”Eu soube de uma forma terrível. Eu tinha acordado cedo para ir para o Maranhão, ia participar de uma agenda com o MST lá”.
A deputada Sâmia Bomfim voltou ao plenário da Câmara Federal, segunda-feira, 27, pela primeira vez, desde que seu irmão, o médico Diego Bomfim, de 35 anos, foi brutalmente assassinado, na madrugada de 5 de outubro, quando estava em um quiosque na praia da Barra, zona oeste do Rio de Janeiro, em uma ação orquestrada por milicianos.
Outros dois médicos que o acompanhavam, Marcos de Andrade Corsato, 62, e Perseu Ribeiro Almeida, 33, não sobreviveram. Daniel Sonnewend Proença, 32, foi o único que resistiu aos tiros. Naquele dia, todos estavam de passagem pela cidade para um congresso internacional de ortopedia —e, segundo as investigações, foram assassinados por engano. A deputada Sâmia revelou que soube da notícia de forma terrível. Ela tinha acordado e se preparava para vir ao Maranhão.
A deputada Sâmia, 34, é a caçula de três irmãos —Dayane Bomfim, 36, e Diego, agora morto.
“É muito duro pensar que a pessoa com quem você conviveu desde que nasceu foi morta de uma forma tão brutal, por acidente. Pensar que ele não teve nem o direito de saber por que estava morrendo”, afirmou a deputada à jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo.
Quase dois meses após as execuções que escandalizaram o país, Sâmia volta à atividade legislativa depois de um período afastada por recomendação médica. A Bergamo, a deputada federal falou pela primeira vez sobre o luto, o inquérito ainda aberto e as falhas na condução do caso. “Nunca fomos buscados pelo estado do Rio”, disse.
A Polícia Civil afirma que os três médicos teriam sido assassinados por engano. No dia seguinte às execuções, quatro suspeitos foram encontrados mortos, o que reforçaria essa tese.
– Como avalia a investigação?
– Minha primeira reação foi não acreditar quando vi a informação de que seria uma morte por engano. São muitas coincidências: além de ser irmão de uma deputada, também é cunhado de um deputado no Rio de Janeiro [Glauber Braga, do PSOL, marido de Sâmia].
– É natural que haja essa desconfiança, há um trauma social imenso no Brasil em função da não resolução do assassinato da Marielle[Franco, ex-vereadora, morta em 2018], também no Rio de Janeiro, feito pelas milícias.
– Mas não houve nenhum indício de ter sido uma execução política. Pelo menos, não em stricto sensu, porque de alguma forma foi político. É uma disputa territorial entre grupos organizados com controle armado por territórios do Rio de Janeiro. Isso é muito político. E aí, meu irmão e os outros dois médicos acabam, por engano, sendo atingidos.
Aquelas coincidências todas que o Brasil ficou conhecendo, da semelhança física [de um dos médicos assassinados com um miliciano], da proximidade da residência do [miliciano] Taillon [Barbosa, suposto alvo original do ataque], que foi preso há poucos dias, reforçaram essa linha de investigação. Mas o inquérito ainda não se encerrou.
É muito difícil porque nada muda a situação, nada traz ele de volta.
– Como foi esse dia para a senhora?
– Eu soube de uma forma terrível. Eu tinha acordado cedo para ir para o Maranhão, ia participar de uma agenda com o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) lá. Acordei, tomei banho, fiz a mala, peguei meu celular para fazer o que eu faço todos os dias, que é dar uma olhada geral no WhatsApp e nas notícias.
Uma jornalista me deu condolências e perguntou se a minha família já estava a caminho do Rio para ver o traslado. Na hora, eu pensei: “Acho que ela está me confundindo com outra deputada, minha família não é do Rio”. Imediatamente, entrei na página do jornal para ver do que se tratava e vi a foto do meu irmão.
O luto tem suas etapas. Tem hora que parece devastador e impossível, tem momentos de mais calmaria, de mais saudade. Outros, de mais dor.
Foi uma negligência imensa do hospital, da polícia; enfim, do estado do Rio de Janeiro. Eu e minha família soubemos através da imprensa, e a família dos demais [assassinados] também. Uma notícia dessas você não dá dessa forma.
Até agora, na verdade, as respostas mínimas que a gente tem é porque fomos atrás. Nunca fomos buscados pelo estado do Rio.
– Quando vocês tiveram acesso ao inquérito?
– Foi no mês passado, depois de uma reunião que fiz no Rio.
O inquérito é sigiloso, até porque a gente está falando de questões muito sérias e graves, de pessoas [envolvidas] e eventuais testemunhas. Mas foi importante ter acesso justamente por conta dessa falta de resposta, dessa ausência de cuidado com a nossa família.
– Quais negligências ou falhas vocês identificaram no inquérito?
– Na investigação eu não sei te dizer porque segue em aberto.
As negligências se deram na forma como a gente soube da notícia. E, por um tempo, as coisas que meu irmão tinha deixado no hotel ficaram desaparecidas, ninguém sabia onde estavam. O hotel não sabia, a polícia não sabia. De repente, encontraram as coisas dele. A gente vai receber nesta semana.
Muitas coisas o próprio Daniel, que foi o sobrevivente, vai poder relatar melhor depois. Mas a gente sabe que houve demora para a ambulância chegar para o socorro do meu irmão e do Daniel. Foram de 20 a 25 minutos de espera, um tempo considerável, já que as pessoas foram baleadas.
É um tempo que pode colocar em risco a vida de uma pessoa que pode sobreviver. Principalmente para o Daniel, que estava com condições claras de sobrevivência, mas também do meu irmão, que não morreu na hora.
No atestado de óbito está registrado que ele morreu no hospital. A gente ainda não sabe se foi no trajeto ou no hospital, mas não foi na hora.
Sempre dá uma sensação ruim saber dessa demora. E do fato de que as pessoas passavam por lá, olhavam, fez-se um cordão [de curiosos] enquanto estavam ali, esperando o socorro.
Não sei o que o inquérito pode nos trazer de conforto.
Acho que é uma questão mais estrutural do estado do Rio. A gente sempre soube da situação, do domínio do crime organizado nas suas diferentes ramificações. Há poucos dias, uma policial foi assassinada por investigar o problema das milícias.
É uma situação desesperadora, de forma generalizada, que atingiu a minha família e mais duas, mas que atinge muita gente todos os dias.
A senhora se angustia por saber que o caso está sendo investigado no Rio, que ainda não solucionou o caso da Marielle?
Sem dúvida. Não é nada contra as pessoas, os profissionais que estão diretamente envolvidos e que estão fazendo o seu trabalho. Não se trata de uma questão moral, individual. Mas é porque há uma falência do sistema de segurança pública. O estado do Rio de Janeiro é uma falência generalizada.
E são tantos casos absurdos, sem resolução, ou tantos novos casos absurdos, que em tese são motivados por crimes anteriores, que é angustiante e desesperador.
A hipótese da federalização [do caso dos médicos] tinha a ver com a possibilidade de ter uma relação política, diretamente comigo ou com o meu marido. Não tendo indícios para essa hipótese, acabou não se federalizando.
– Como que a senhora e a sua família processam essa perda, sabendo que ela é um sintoma de uma questão coletiva maior?
– É muito duro pensar que a pessoa com quem você conviveu desde que nasceu [faz uma pausa e chora]… foi morta de uma forma tão brutal, por acidente. Pensar que ele não teve nem o direito de saber por que estava morrendo, sabe? Isso não tem o menor cabimento para ninguém.
Minha mãe sempre temeu por mim, na verdade, de morrer numa circunstância como essa, de ser executada, porque eu recebo muitas ameaças. Eu lido com a extrema direita, que defende esse tipo de prática e efetivamente faz isso. Mas a gente nunca imaginou que algo do tipo pudesse acontecer com o meu irmão.
Ele era, sim, uma pessoa de esquerda. Sempre foi. Mas nunca se envolveu com a política. Ele era médico, estava ali [no Rio de Janeiro] para estudar, se aperfeiçoar
Ele era, sim, uma pessoa de esquerda. Sempre foi. Mas nunca se envolveu com a política. Ele era médico, estava ali [no Rio de Janeiro] para estudar, se aperfeiçoar.
É uma sensação de profunda injustiça, de muita tristeza e de muita revolta mesmo. [Ele foi] uma pessoa que trabalhou muito a vida inteira, estudou muito. Foi muito difícil chegar onde ele chegou, como médico especialista. E, de repente, ser assassinado dessa forma, por engano, é “improcessável”. Não consigo imaginar isso sendo aceito e tratado de uma forma natural. Não é. Não tem como ser.
– A senhora sofreu ataques nas redes sociais. Diziam, entre outras coisas, que ele foi morto por bandidos que a senhora supostamente defenderia. Como lidou com isso?
– Eu preferi me apegar às mensagens positivas e de solidariedade que chegaram —e foram muitas, de lugares que eu nem imaginava. Famosos, anônimos, familiares, amigos de infância, políticos, entidades. Foi reconfortante e muito bonito.
E, claro, foi inevitável ver algumas mensagens de raiva, mas eu confesso que nada daquilo me surpreendeu. As pessoas fazem isso todos os dias.
Honestamente, eu não espero nada diferente de pessoas assim. Imagina tripudiar ou fazer ilações, difamação, e tentar fazer distorções em cima de uma dor, um sofrimento familiar tão grande? Acho que é um pouco parte do esgoto de onde essas pessoas vieram.
– Como essa perda mudou a sua rotina?— Para ir à padaria, à farmácia, a qualquer lugar, sou acompanhada pela Polícia Legislativa [desde o episódio, Sâmia é escoltada 24 horas por dia]. Isso traz uma obrigação de planejamento. Às vezes eu desisto de fazer algo porque tem que avisar e fazer não sei o quê.
É a segurança da minha família, principalmente a do meu filho [Hugo, de dois anos e cinco meses]. Tenho que pensar, inclusive, em poupá-lo mais de aparição.
Mudou a minha rotina no sentido de dar um pé no freio em tudo para me preocupar com coisas internas, que foi algo que eu nunca tinha feito anteriormente, e processar o luto. A gente fala muito pouco sobre o luto.
Já tive perdas, mas nunca dessa forma, tão violenta. E o luto tem suas etapas, tem ondas, vai e vem. Tem hora que parece devastador e impossível, tem momentos de mais calmaria, de mais saudade. Outros, de mais dor.
Eu ainda estou vivenciando. Acho que o tempo da vida e o tempo da política não é o tempo do luto. Você tem que ir se reconstruindo e vivendo. E vou aprender a lidar, na verdade, ao longo do tempo. É uma dor que eu vou carregar comigo.
– Como se reorganizar depois desse episódio? Suas pautas na Câmara devem mudar?
-,Eu tinha acabado de sair de uma CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] muito dura, que foi a CPI do MST. A gente ficou muito feliz. Os proponentes dela saíram completamente desmoralizados, derrotados. A gente venceu.
Acho que foi em função da minha atuação nela que eu acabei ganhando o prêmio de melhor deputada do ano [do portal Congresso em Foco, por votação popular].
Em dez dias, fui do céu ao inferno. Parece que nada faz sentido, que pouco importa. Foi uma tragédia muito grande.
Agora, é retomar aos poucos. Mas acho que é inevitável que a minha preocupação sobre a temática da segurança pública ganhe importância. Estou pensando nisso todos os dias.
Não só a segurança pública como a gente conhece, mas de que forma que as vítimas de homicídio, as vítimas de violência do Estado e suas consequências são tratadas. A gente passou por muita coisa, e tem como pensar também uma legislação para amparar melhor os familiares, as vítimas.
-?Como foi a decisão de se afastar temporariamente da Câmara dos Deputados?
– Foi uma decisão que precisei tomar por recomendação médica, e também porque precisava cuidar da minha família. Saúde mental é uma coisa muito séria, e, desde que iniciei minha atuação na política institucional, eu nunca tinha parado por questões particulares ou emocionais.
Seria uma violência comigo mesma se eu continuasse. Mas também acho que seria uma desonestidade com meus eleitores. Eu não gosto de fazer as coisas pela metade.
Agora, decidi retornar por uma necessidade política mesmo. Trabalhar tem um efeito terapêutico, porque você se coloca em movimento, faz coisas em que acredita.
– A senhora é alvo de ataques e já recebeu ameaça de ser estuprada e morta na frente de seu filho e de seu marido. Quando ocorre a execução do seu irmão, esses ataques se repetem. O que te motiva a seguir na vida pública?
– Tudo o que aconteceu reforçou a minha indignação, a minha revolta e a minha vontade de mudança. É claro que eu fico mais baqueada, subjetivamente é inevitável. E mais triste e mais cética, talvez. Você se sente impotente diante de uma questão de tamanha magnitude.
Mas as minhas convicções não mudaram, a minha indignação não diminuiu. Só aumentou, na verdade. É por isso que eu sigo.
Vou fazer o que tem que ser feito nesse aspecto da saúde mental. Se necessário, [recorro a] um novo afastamento —vou ser sempre muito sincera. Mas desistir não está no meu horizonte.