Sugestão aconteceu em palestra concedida a alguns parlamentares, na qual falou que o ser humano precisa substituir o paradigma do capitalismo por um modelo norteado pelo amor, solidariedade e a interação entre o cérebro e o coração para continuar habitando a Terra_
Por Humberto Azevedo, especial para O INFORMANTE / JORNAL PEQUENO
O teólogo e filósofo Leonardo Boff sugeriu que a nova gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva crie universidades amazônidas “para salvar a vida da humanidade”. A sugestão aconteceu em palestra concedida a alguns parlamentares do PT e do PSOL na tarde da última quarta-feira ao qual o Jornal Pequeno teve acesso.
Na oportunidade, Boff falou que o ser humano precisa substituir o paradigma do capitalismo por um modelo norteado pelo amor, solidariedade e a interação entre o cérebro e o coração para continuar habitando a Terra. Ele reforçou que a humanidade vive um momento decisivo entre as “trevas” com o planeta ficando cada vez mais inóspito a espécie humana, e poder continuar habitando a “casa comum” em sintonia com a natureza.
De acordo com ele, as “universidades amazônidas” a serem criadas com a presença de diversos cientistas de vários países permitirá ao Brasil e aos povos que habitam a região a chance “para que ela [Amazônia] possa ter as condições de se autoproduzir e nós continuarmos a nossa caminhada” no planeta.
“No mundo inteiro existem hoje 111 cidades altamente sustentáveis e integradas. Então é possível que o ser humano [encontre] um novo paradigma de outros valores, outra visão, diferentes do capitalismo e viva a era das mentes e dos corações unidos. Aí o ser humano vai descobrir que o outro irmão dele estabelece um laço de respeito, de veneração, com a natureza”, iniciou.
“O nosso grande cientista da Amazônia, Antônio Nóbrega, tem uma visão muito pessimista da Amazônia. Ele disse que nós já eliminamos 20% da Amazônia. Se chegar a 30% é um caminho de não mais retorno. Porque ela não está assentada sobre o solo. Ela se alimenta do entrelaçamento das raízes, das folhas, das naturezas e embaixo é areia. E você derrubando aquelas árvores [para transformar em lavoura], você faz uma primeira e segunda boas colheitas e a terceira, nada. Então, se nós não cuidarmos do cerrado e da Amazônia, porque o cerrado é uma Amazônia invertida. Em vez de crescer para cima, cresce para baixo. As raízes vão dez, quinze metros dentro do solo e aqueles rios volantes da Amazônia cheios durante as chuvas caem ali [no cerrado]. Porque o cerrado é uma grande caixa d’água dos rios brasileiros e todos eles estão diminuindo porque as raízes não alimentam mais aquelas águas porque plantam soja, girassol, desmatam e não se dão conta que é a parte mais antiga da Terra. Porque quando a Terra era um grande oceano e quando apareceu a primeira parte da terra, isso era o cerrado que apareceu. Por isso ele é irrecuperável. Não dá mais para refazer. E Antônio Nóbrega diz: se nós não cuidarmos do cerrado, ele vira uma savana, um semi deserto até as portas de Brasília. Então nós estamos numa situação limite”, discursou.
Resgate dos direitos do coração – Boff comentou que é necessário que a raça humana resgata “os direitos do coração”. Segundo ele, “nós desenvolvemos em excesso a razão estrutural-analítica e esquecemos a razão cordial, a razão sensível, a razão do coração”.
“É essa razão sensível, que tem 220 milhões de anos, desde quando surgiram os mamíferos. O mamífero quando dá cria, ele ama, ele cuida, e nós esquecemos que não somos apenas animais racionais, somos mamíferos racionais. Nós somos seres de emoção, de sensibilidade, o coração é a sede do mundo das excelências, da ética, do amor, da empatia. Só que ele estava desgarrado da razão instrumental-analítica entendida como o poder da dominação, que construiu a civilização moderna. [Isso] trouxe muitas vantagens. Nos deu antibiótico, melhorou a nossa vida, mas simultaneamente criou o princípio da autodestruição”, observou.
“Então, devemos abandonar esse sistema. E como temos que viver, temos que ter um pé neste sistema [capitalista], lógico, porque temos que trabalhar, ganhar nosso dinheiro [para o sustento], mas o outro pé [temos que ter] no novo. Para começar com outro tipo de consumo, de relação, e tentar unir o enriquecer, que é a razão instrumental-analítica e é importante para dar conta das sociedades complexas que nós temos, se não nós não damos conta”, continuou.
“Então, nós devemos nos enriquecer com sentimento, com afeto, com esse lado mais emotivo do ser humano. Aquilo que o Papa Francisco disse lá em Lampedusa [na Itália] quando vinham aqueles barcos [naufragados com imigrantes] que vinham se afogando: ‘a sociedade ocidental não sabe mais chorar. Ela é cruel e sem piedade as dores dos seres humanos’. Então, essa é a nossa cultura real: ela é cruel e sem piedade. Aquilo que Betinho [sociólogo Heberth de Sousa] sempre dizia, ‘a crise não é política, religiosa, biológica, a crise é de sensibilidade’. [Quando] a gente não sente [a dor] do semelhante que está do nosso lado”, grifou.
Lição – Durante a palestra que concedeu a alguns parlamentares a convite da segunda secretária da Câmara dos Deputados, Maria do Rosário (PT-RS), na sala de reuniões de líderes daquela Casa legislativa, a humanidade teve uma grande lição durante os dois últimos anos em que parte do mundo parou em virtude do covid-19, apesar do capitalismo.
“O capitalismo nos ensina [o contrário]. E se durante a covid-19 seguíssemos esses mantras do capitalismo, que visa [apenas] o lucro, a competição, a acumulação individual, a exploração ao máximo da natureza, o estado mínimo para se ter mais liberdade no seu processo de produção, estaríamos perdidos. Se tivéssemos seguido esses mantras, estaríamos perdidos”, comentou.
“O que nos salvou foi a solidariedade, a compaixão, a capacidade de se criar laços de afetividade. Foi isso que nos salvou: a lógica do coração – a razão sensível, cordial, que é uma corrente filosófica muito grande na França, no Brasil, nos países lusófonos. Nós temos que unir a cabeça com o coração. Se nós não unirmos isso, nós não passaremos para a próxima fase [civilizatória]”, completou.
Desafios – A partir deste ponto da palestra, Boff começou a abordar os desafios que estão postos para o mundo mudar o paradigma estabelecido pelo capital para um paradigma que evite previsões catastróficas para o futuro da humanidade.
“A tendência do capital é se livrar cada vez mais das pessoas, dos humanos, dos trabalhadores e robotizar toda a produção com inteligência artificial e, inclusive, a inteligência artificial autônoma extremamente perigosa inaugurada no ano passado ao qual trabalha com bilhões e bilhões de algoritmos. Aquilo que nós estamos falando aqui, eles estão gravando tudo, querendo ou não querendo. Pode apagar do computador, eles recolhem tudo. Pode deixar o celular lá fora, eles captam. Então, eles querem criar um tipo de sociedade totalmente controlada, quando o ser humano será dispensado e ele não saberá o que fazer por que se habituou ao trabalho que dava sentido a sua vida”, prospectou.
“Isso realizaria o grande sonho de [Karl] Marx: de libertar do mundo a necessidade de produzir e te dar o mundo da liberdade: em que um vai se tornar pintor, outro músico, em que faz mil coisas e de forma criativa não precisando mais lutar pela sobrevivência. Nós estamos chegando a esse ponto, mas pela via pior que se tem. Pela via da acumulação ilimitada do capital, que é a pretensão dele de controlar toda a trajetória do ser humano e assim dominando [a todos]. Então, eu acho que vamos ter saudades do tempo em que temos que trabalhar. E ao prolongar a vida, vamos ter saudade do tempo que poderíamos morrer tranquilamente. Eles não deixam a gente morrer porque isso daí dá lucro. De modo que já está ocorrendo isso no Japão, nos Estados Unidos e em muitas regiões; nas colheitas, vocês podem ver como se dão a colheita da soja, do arroz, do trigo, com aquelas grandes máquinas. Daqui a pouco não vai ter ninguém lá. Vai ser tudo automatizado e aí sobra a humanidade. Resolve um problema técnico, mas cria um imenso problema social. Por isso, é o grande problema que nós temos de como fazer a passagem, a travessia, entre o paradigma fora da natureza, em cima dela, explorando, ou a travessia sentido-se parte da natureza, sentido ser o guardião dela, realizando o ideal bíblico de guardar e cuidar do jardim do éden. Essa travessia pode ser tão desastrosa em termos sociais, que equivale a uma guerra”, observou.
“Então, nós estamos num impasse. Temos que mudar, mas a mudança tem que ser processual. A questão é se nós temos sabedoria suficiente e tempo suficiente para isso. A maioria dos climatólogos viraram céticos e cínicos. Dizem que só com o acumulado de 400 bilhões de toneladas, que está na atmosfera, de CO2 [gás carbônico] e de metano, só com isso podemos mudar todo o clima da terra. Não adianta fazer mais nada com aquilo que está acumulado. Os efeitos negativos e danosos virão fatalmente. E a humanidade tem que se preparar para com esta situação, diminuir o mais possível, minimizar o mais possível os danos, para isso serve até a ciência. Todos dizem: chegamos atrasados. Se tivéssemos previsto antes poderíamos ter desenvolvido tecnologias, modos de produção diferentes da água, da preservação dos rios etc. Não fizemos nada disso. Era sempre na produção ilimitada num planeta limitado, que não suporta um projeto ilimitado”, lamentou.
“O Papa chama [a atenção a] isso na encíclica: ‘é mentira sustentar um desenvolvimento ilimitado num planeta limitado’. E esse é o nosso problema: nós estamos dentro desse sistema [capitalista], que eu acho que só com criatividade humana, começando de baixo e fazendo as revoluções moleculares, cada um conversando consigos mesmos e com os seus grupos e eu sonho que nesta nova fase a gente possa politizar as bases, criar uma educação diferente dos grupos de base especificamente do PT, que a gente inclua esses temas fundamentais de qual é o futuro da nossa terra, para o nosso clima, das nossas águas, dos nossos solos. Começar ali a conscientização das nossas responsabilidades, então não dá mais para seguir o modelo clássico de formação [política]. Tem que se incluir elementos novos porque os tempos são novos. Porque são tempos dramáticos porque temos pouco tempo realmente para ajudar, se é que há tempo”, alertou.
Apocalipse – Neste momento da palestra, Boff traçou um paralelo com as escrituras do velho testamento para dizer que a não mudança de paradigma de modelo de desenvolvimento e de sistema significarão os tempos finais tal como está escrito nas escrituras do velho testamento, no apocalipse bíblico.
“Há muitos e grandes, especialmente biólogos, que dizem: chegou a nossa vez como todas as espécies têm seus clímax, depois de milhões e milhões de anos desaparecem, chegou a nossa vez de desaparecer do planeta. E nós aceitarmos que somos finitos, mortais e aí vem a fé cristã e diz: a alternativa cristã é a vida, ou a ressurreição. Que Deus pobre das ruínas do mundo que nós mesmo produzimos criar um homem novo, uma mulher nova, como se fala no apocalipse e buscar uma nova terra. Essa é uma fé, é o salto da fé. Mas a gente pensa no processo cosmogênico, que inclui todos os fenômenos, religião etc, que são subprodutos deste processo – que significa que quanto mais gente estiver pensando nisso é o próprio universo, que através de nós, está pensando nestas coisas”, pontuou.
“Nós temos poucas alternativas. Ou nós decidimos continuar com essa toada, com esse ritmo que nós temos e aí vamos ao encontro do pior; ou, então, nós mudamos. ‘E a alternativa da não mudança são as trevas’. É a última frase deste grande cidadão do século 20, Eric Hobsbawm, em que ele diz: ‘nós não podemos construir o século 21 com os valores do presente e do passado. Nós temos que mudar’”, finalizou.