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POR FRANCISCO LOPES *

Esta nota faz nova projeção “ceteris paribus” para a evolução da pandemia e um comentário sobre um equívoco que vem sendo propalado pelo presidente Jair Bolsonaro.

1) Projeção da covid-19

Comparando a tabela do último dia 26 de abril (tabela 1) com a tabela que retrata a situação atual após uma semana (tabela 2), vemos que em nível mundial a pandemia de covid-19 continua com evolução bastante favorável. O fator de propagação R0 [o número básico de reprodução, medida de quantas pessoas são infectadas em média por alguém com a doença] mundial continua caindo de 1,025 para 1,023, assim como nos Estados Unidos, que é o atual “campeão” de infecções, onde foi de 1,027 para 1,023. Países como Espanha, Itália, França, Alemanha e Irã, com R0 inferior a 1,010, podem ser considerados com epidemia já praticamente estabilizada.

Turquia com 1,013; EUA com 1,023 e Reino Unido com 1,023 parecem também evoluindo de forma consistente para a estabilização. As principais discrepâncias de R0 na tabela continuam sendo Rússia com 1,079 e Brasil com 1,045, com a diferença que o coeficiente russo permaneceu estável desde a semana passada, enquanto o brasileiro caiu de 1,058 para 1,04.

Outra diferença importante entre as situações desses dois países está no coeficiente de letalidade, com o nosso subindo ligeiramente de 6,79 para 6,95. No caso da Rússia os coeficientes de letalidade abaixo de 1% colocam em duvida a confiabilidade da informação.

De qualquer forma fica claro que o Brasil continua neste momento com uma das duas dinâmicas mais desfavoráveis entre os “dez mais infectados” do mundo.

A próxima tabela faz uma projeção “ceteris paribus”, isto é, mantendo constantes todos os parâmetros de propagação e as taxas de letalidade, para um horizonte de 30 dias (tabela 3).

Podemos ver que o número total de infectados no mundo supera os 7 milhões, com quase 500 mil óbitos.

Vemos também que o Brasil vai para a quarta colocação entre esses dez países mais infectados, com cerca de 380 mil casos confirmados e 26 mil óbitos, quase quatro vezes mais que os cerca de 7 mil atuais.

O que podemos concluir? O Brasil está caminhando na direção de se tornar um dos países mais infectados em um mundo que está convergindo para a estabilidade. Para que isso não ocorra precisaríamos de uma melhora significativa no nosso parâmetro de propagação R0, mas é difícil imaginar que vamos conseguir reduzir rapidamente dos atuais 1,045 para a média mundial de 1,023. A Rússia parece ter uma propagação mais explosiva que a nossa, mas os números desse país não parecem ter muita credibilidade.

Ao contrário da tese do presidente de que não há como evitar um grande número de infecções, o isolamento salva vidas

Por outro lado nossa taxa de letalidade está igual à media mundial, mas poderá piorar se a ampliação do numero de infectados produzir um colapso no nosso sistema hospitalar. É interessante observar que na projeção “ceteris paribus” de 30 dias estamos com menos óbitos que Estados Unidos, Reino Unido, Espanha, Itália e praticamente empatados com a França.

Se pudermos manter ou reduzir a taxa de letalidade atual, nossa posição será bem melhor do que Reino Unido, Itália e Espanha, sendo interessante notar que o primeiro, apesar de “latecomer”, resistiu por muito tempo a adotar estratégias de “lockdown”. Não há dúvida que no Brasil os maiores riscos em relação à letalidade são a entrada do clima mais frio do inverno e a pressão do governo federal por um relaxamento mais rápido do distanciamento social.

Uma vantagem da planilha de projeção “ceteris paribus” é que podemos facilmente alongar o horizonte de análise. Por exemplo, a próxima tabela projeta os mesmos parâmetros atuais num horizonte de 60 dias (tabela 4).

Nessa projeção o Brasil chega ao terceiro lugar, com quase 1,5 milhão de casos e 100 mil óbitos. Entretanto, tendo em vista a experiência de outros países, não parece razoável supor que o nosso fator de propagação R0 vai permanecer em 1,045 por 60 dias, particularmente se não houver um rompimento drástico da politica de distanciamento social. A evolução projetada da Rússia mostra o efeito devastador de um coeficiente R0 mais elevado em um horizonte mais longo.

Se o R0 brasileiro cair para 1,02 ao longo do mês de maio e para 1,01 ao longo do mês de junho, o total de casos no inicio de julho vai ficar em algo como 247 mil com 17 mil óbitos, cerca de 2,5 vezes maior que o nível atual.

Este pode ser considerado nosso cenário mais otimista, que infelizmente parece bastante pouco provável.

Um caso que merece um acompanhamento cuidadoso é o dos Estados Unidos, cuja posição atual está na próxima tabela (tabela 5).

Pode-se notar que o principal foco de infecção ocorreu em Estados da Nova Inglaterra. De fato Nova York, Nova Jersey e Massachusetts apresentam 519 mil casos, o que corresponde a 44% do total nacional de 1,19 milhão. Em termos do coeficiente de incidência de casos sobre população, Nova York, com 1,67%, apresenta o maior número entre todos os casos que já vimos aqui.

Também interessante observar que em todos esses dez Estados mais infectados o coeficiente de propagação já se encontra abaixo de 1,02 com uma clara sinalização de que parecem estar se aproximando da estabilização.

Mas aqui parece surgir o seguinte paradoxo: como é possível que o R0 para o país como um todo seja de 1,023 enquanto esses dez Estados, que representam 72% do total, apresentam coeficientes inferiores a 1,02. A resposta é que, nesses dez estados mais infectados, a epidemia está claramente perdendo velocidade, mas nos outros 40 Estados o processo de propagação encontra-se mais atrasado e, por isso, com R0 mais elevado.

Ou seja, mesmo com a estabilização naqueles dez Estados mais infectados a epidemia tende a continuar com menor velocidade num processo de propagação ao longo do país. Para evitar isso seria necessário fazer como a China fez, ao isolar completamente a província de Hubei até a estabilização total.

Isso ensina que num país grande, como Estados Unidos e Brasil, se não houver vacina a epidemia poderá estabilizar nas regiões mais infectadas, mas continuar se propagando em ritmo mais lento no resto do país. Ou seja, há que se ter em mente que esse processo pode se desenvolver em ondas de menor intensidade em diferentes localizações geográficas.

2) O equívoco de Bolsonaro

Essa pandemia do coronavírus tem colocado muito claramente o dilema entre saúde e economia, ou seja, entre salvar vidas e ter o menor impacto possível sobre a atividade produtiva do país. Não é uma escolha simples, e a grande maioria dos países tem optado por dar prioridade à saúde, a partir do raciocínio de que a produção de bens materiais sempre pode ser recuperada no futuro, mas qualquer vida sacrificada é uma perda irreparável.

O presidente Bolsonaro acredita, porém, que esse é um falso dilema. Com base nas opiniões de Osmar Terra e outros “pundits” da infectologia argumenta que a epidemia de covid-19 só vai arrefecer com 60% a 70% da população infectada, de modo que qualquer estratégia de isolamento só pode ter efeito paliativo e transitório.

Isso, porém, parece ser um grande equívoco, pois, como se pode ver nos números das tabelas acima, em todos os casos considerados a estabilização da propagação será alcançada com menos de 1% da população em casos confirmados de infecção.

Ou seja, um percentual muito menor do que aqueles 60% a 70%. De fato quando comecei a mexer com esses números fiquei surpreso por encontrar valores tão pequenos para as taxas de incidência. Mesmo se admitirmos um número real de infectados dez vezes maior que o numero de casos confirmados, a incidência efetiva, incluindo casos não registrados, será da ordem de 10%. Importante também notar que, nesse caso, a nossa taxa de letalidade efetiva será reduzida de 7% para algo como 0,7%.

Ou seja, ao contrário do terrorismo implícito na tese presidencial de que não há como evitar um grande volume de infecções (60% a 70%), medidas como o isolamento social, que salvam vidas, não são irrelevantes e podem ser justificadas, a despeito de seu impacto negativo sobre a economia. O beneficio do isolamento social parece claro: se você se cuidar, tentar não sair de casa e evitar aglomerações, o risco de chegar infectado ao final desse tenebroso ano de 2020 é relativamente pequeno, mas esse risco pode aumentar explosivamente (vide o R0 da Rússia) se você abandona totalmente esses cuidados.

É claro que se não surgir uma vacina no longo prazo o percentual de casos tende a aumentar ao longo do tempo, ainda que de forma não explosiva. Dessa forma, sem vacina é possível que num horizonte de 10 a 30 anos cheguemos mais perto daquele percentual “teórico” de 60% a 70%. Acontece que isso é uma possibilidade irrelevante para o momento atual, quando são discutidas alternativas de política de saúde, como o chamado isolamento vertical. O custo econômico da pandemia será grande, mas isso não justifica políticas de governo que produzam o sacrifício desnecessário de vidas humanas. (Valor Econômico)

* Francisco Lafaiete Lopes, PhD pena Universidade Harvard, é sócio da consultoria Macrométrica e ex-presidente do Banco Central