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Futuro ministro da Justiça do governo Lula diz que criará secretaria para vulneráveis e diretoria na PF para a Amazônia

O futuro ministro da Justiça e da Segurança Pública, Flávio Dino, afirmou em entrevista ao Valor Econômico que o Ministério da Justiça voltará a ter protagonismo no governo Lula, em especial na interlocução com os Poderes Legislativo e Judiciário, papel que tradicionalmente a pasta desempenhou em todos os governos, desde a redemocratização.

Dino antecipou que vai criar a nova Secretaria de Acesso à Justiça (Saju), para defender os direitos da população mais vulnerabilizada, com enfoque em ações contra crimes raciais e feminicídio, por exemplo. E também mencionou a recriação da Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL), que foi extinta pela gestão atual, dificultando a interface do ministério com os assuntos em tramitação no Legislativo.

Ele defendeu a revisão da legislação dos acordos sobre leniência, para que empresas sem condições de honrar os compromissos possam cumprir suas obrigações na prestação de serviços. Mas ressaltou que é contra a revisão do conteúdo desses acordos, como foi defendido por alguns integrantes da transição.

Dino adiantou ao Valor as prioridades da pasta para os primeiros cem dias do governo Lula, entre elas a criação de uma diretoria de combate aos crimes ambientais na Amazônia no âmbito da Polícia Federal.

A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:

Valor: Quais serão suas primeiras ações no ministério após a posse?

Flávio Dino: Teremos, de um lado, a propositura ao presidente de decretos que revoguem atos indevidos, sobretudo na temática das armas de fogo. Também decretos em relação aos direitos do consumidor, no caso das pessoas superendividadas, para que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) possa ser adequadamente cumprido. Teremos, ainda, alguns atos que vamos editar sobre a Polícia Rodoviária Federal (PRF) para garantir que ações ilegais sejam afastadas. Tivemos nesse momento a formação de um verdadeiro entulho normativo ilegal, inconstitucional e a primeira providência será restaurar a ordem jurídica.

Valor: Qual será a prioridade na área de segurança pública?

Dino: A partir da reunião que o presidente Lula terá em janeiro com os governadores, vou dar sequência a essas conversas com os secretários de Segurança Pública estaduais, com os comandantes das Polícias Militares (PMs), com os delegados-gerais das Polícias Civis, para que a gente possa definir a governança federativa do Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Vamos tirar o Susp do papel para fortalecer as ações conjuntas e vamos tratar do Fundo Nacional de Segurança Pública, ver como desburocratizamos o fundo nesse momento.

Valor: Os recursos do fundo de segurança estão quase sempre contingenciados…

Dino: Nas reuniões que fiz na transição, houve clamor dos gestores estaduais sobre isso, eles sentem dificuldade para ter acesso ao fundo. É uma dupla agenda que vou ter com Estados e também com municípios, porque temos o tema das guardas municipais para incorporar a esse esforço de segurança pública.

Valor: O senhor citou a edição de normas relacionadas à Polícia Rodoviária Federal (PRF). Haverá ações para evitar abordagens como aquela que resultou na morte de Genivaldo Santos, em maio, em Sergipe, asfixiado com gás dentro de uma viatura?

Dino: Tivemos na PRF, infelizmente, um impulso de uma atuação fora das suas atribuições constitucionais. Neste caso concreto [de Genivaldo], tivemos a PRF atuando, supostamente, em razão de uma infração de trânsito. A acusação inicial era de que o cidadão estava sem capacete, mas os atos que se seguiram [de abordagem violenta] nada têm a ver com a atribuição da PRF. Nós vamos trazer a Polícia Rodoviária Federal para a legalidade.

Valor: No que a PRF se excedeu naquele caso?

Dino: Houve com a edição de portarias ministeriais uma expansão das atribuições da PRF para áreas que não são suas. A Constituição define que a PRF deve cuidar de policiamento ostensivo das rodovias federais. Estamos falando da preservação de vidas, de ações preventivas em relação a crimes nas rodovias. A PRF vai cuidar disso, não vai realizar ações de polícia judiciária, não vai realizar investigações, não vai realizar ações repressivas violentas fora da sua competência constitucional, que foi o que aconteceu nesse caso.

Valor: O que fará para combater a “bolsonarização” das polícias?

Dino: Vamos, essencialmente, separar o joio do trigo. Isso não tem a ver em quem o policial votou, ele pode ter votado no [presidente Jair] Bolsonaro, isso não é problema nosso, ele tem o direito de votar em quem quiser. O que ele não pode é transformar o voto em militância institucional.

Valor: A maioria dos policiais votou em Bolsonaro…

Dino: Gosto não se discute. Eu sou dos que militam a favor da mensagem de Jesus Cristo. Se a pessoa quer se engajar num paradigma demoníaco, eu lamento, a pessoa vota em quem quiser. Agora ela não pode usar a arma da instituição, a farda, a viatura para transformar esse voto em militância. Não pode e não o fará porque tem norma, tem autoridade, tem disciplina. Todos aqueles que, independentemente do voto, quiserem trabalhar pelo país e pelas novas normas fixadas pelo presidente Lula são bem-vindos. Agora quem quiser sabotar politicamente a polícia não o fará, isso eu afirmo cabalmente. Não o fará porque o comando não permitirá. Não permitiremos a partidarização da polícia, não importa o lado. Não pode haver partidarização de quem anda com arma na cintura porque corporação armada é instituição de Estado que deve ser neutra, senão perde a credibilidade. E sem credibilidade, perde a autoridade.

Valor: O Ministério da Justiça vai retomar no governo Lula o tradicional protagonismo da pasta na interlocução com os outros Poderes? Essa atuação se perdeu no atual governo, que foi marcado pelos confrontos com o Supremo Tribunal Federal (STF).

Dino: O Ministério da Justiça tem uma dupla face, uma ênfase na segurança pública, que foi fixada pelo presidente Lula, e a busca de que as instituições jurídicas do país, de um modo geral, funcionem bem. Isso envolve a elaboração de novas leis e, por isso, estamos propondo a recriação da Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL) que foi extinta, porque a gente tem uma instância de opinião técnica de leis importantes e também conversamos com as bancadas do governo e da oposição.

Valor: Mas e a relação com o Poder Judiciário?

Dino: O ministério também deve zelar pela qualidade e pela eficácia do sistema jurídico brasileiro, no que se refere à elaboração das leis, e na implementação da justiça. Por isso vamos ter a nova Secretaria de Acesso à Justiça (Saju), que vai cuidar da inclusão jurídica dos grupos vulnerabilizados. A justiça antirracista será uma pauta forte no nosso ministério, assim como o combate ao feminicídio, o apoio às patrulhas Maria da Penha.

Valor: O senhor não acha que a interlocução direta do ministro da Justiça com autoridades do Legislativo e do Judiciário também se perdeu? Talvez em virtude do confronto direto do presidente Jair Bolsonaro com ministros do STF?

Dino: O diálogo com o Congresso, com o Judiciário, com juristas, tudo isso se perdeu nesse período. Por várias razões, talvez pelos perfis de quem passou por lá.

Valor: Discutiu-se na transição a revisão dos acordos de leniência, inclusive celebrados no âmbito da Lava-Jato. O senhor é favorável a isso?

Dino: Sou contra qualquer tese de revisão dos acordos de leniência já celebrados. O que podemos debater é a legislação, que é da competência do ministério, no âmbito da Secretaria de Assuntos Legislativos. Isso é possível.

 

Valor: Mas por que rever agora a lei sobre acordos de leniência?

Dino: Para discutir a situação das empresas que, nesse momento, estão inadimplentes. Temos empresas que fizeram acordos comprometendo-se a pagar milhões ou bilhões de reais e estão em dificuldade. Um caminho possível, e isso também dependerá do Poder Judiciário, é uma mudança na legislação que possa converter uma parte dessas dívidas em serviços.

Valor: Como seria isso?

Dino: Uma empresa que tenha uma dívida de R$ 500 milhões, por exemplo. Um caminho seria rever a lei para que isso possa ser pago em serviço. Uma forma inteligente de garantir que essas empresas cumpram suas obrigações e a sociedade possa ganhar em benefício concreto, como um hospital, ou uma escola. Isso dependeria de uma revisão legislativa. A liderança desse debate no Executivo depende da CGU [Controladoria-Geral da União], em parceria com o MJ.

Valor: O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) voltará para o Ministério da Justiça?

Dino: O Coaf já esteve no Ministério da Justiça, porém a maior do tempo esteve no Ministério da Fazenda. Então, a tendência mais forte é que o Coaf retorne à Fazenda. Não temos oposição a isso, o certo é que ele não pode ficar sob o pálio da autoridade monetária porque são funções que não têm pertinência uma com a outra. O Banco Central já tem muita coisa pra fazer e lavagem de dinheiro, classicamente, é algo que diz respeito à sanidade da economia brasileira. Pode ficar na Fazenda, mas atuando em parceria com os órgãos de investigação.

Valor: A Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor vai atuar para tirar do papel o “Desenrola”, promessa de campanha do presidente Lula?

Dino: Pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), os superendividados têm direito a uma renegociação de suas dividas, o que pode ser feito no âmbito do sistema nacional de defesa do consumidor, ou seja, por meio dos Procons, ou pode ser feito no Poder Judiciário. Vamos ter dupla atuação. Primeiro, vamos procurar o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para que haja uma atuação conjunta dos Procons com o Judiciário para realizar um mutirão nacional de renegociação de dívidas nos termos do CDC.

Valor: Mas existe um decreto do presidente Bolsonaro tratando desse tema…

Dino: Ao regulamentar o Código de Defesa do Consumidor sobre isso, o decreto do Bolsonaro colocou um patamar muito baixo para o chamado mínimo existencial, de apenas R$ 303. Isso quer dizer que pessoa pode pagar as suas dívidas desde que consiga se manter com sua família com R$ 303. Ora se o próprio governo federal diz que o mínimo pra uma pessoa viver é R$ 600, que é o valor do Auxílio Brasil, como o superendividado vai viver com R$ 303? É preciso ter coerência.

Valor: O que o governo Lula vai propor?

Dino: Não significa que esse patamar vá subir muito porque isso poderia dificultar a concessão de crédito. Se a gente fixa o mínimo existencial num valor muito alto, como R$ 1.200, e a pessoa ganha R$ 1.200 por mês, a pessoa não vai ter acesso a crédito, porque a margem de endividamento dela será zero. É preciso um meio termo. Não pode ser R$ 303 porque é fraude e não pode ser um patamar que signifique a negação do crédito.

Valor: O programa envolverá o Ministério da Fazenda?

Dino: Envolve uma condução do ministro [Fernando] Haddad, da Fazenda, para que haja a interlocução da área econômica com o setor financeiro. Nós vamos atuar na preparação do sistema nacional do consumidor. Essa é uma das prioridades para os primeiros 100 dias de governo.

Valor: Por que esse programa é visto como prioridade?

Dino: Porque se essa ação for bem sucedida, as pessoas vão poder voltar ao mercado do consumo e sair da posição de negatividade. A lei diz que quando a pessoa faz o acordo da dívida, ela passa a ter direito a sair dos cadastros restritivos de crédito, sai do SPC, do Serasa e volta ao mercado de consumo. Isso é oportunidade de circulação do dinheiro na economia. É o tipo de tema em que há uma dimensão social de proteção dos mais pobres, dos idosos. Há muitos idosos e servidores públicos superendividados. É uma ação de proteção social e diz respeito à economia, para garantir um mercado de consumo de massa saudável no Brasil.

Valor: Por que o senhor vai criar uma diretoria de combate aos crimes ambientais na Amazônia na Polícia Federal?

Dino: Hoje existe um órgão hierárquico pequeno na estrutura da PF para esse tema, vamos levar isso à condição de diretoria porque significa dar foco, comando, prioridade na alocação de recursos humanos e materiais.

Valor: Por que essa decisão?

Dino: Porque a Amazônia é um desafio internacional da presença do Brasil no mundo, é demandado pelo concerto das nações tendo em vista o interesse na segurança climática. O posicionamento do Brasil no mundo depende do que acontece na Amazônia brasileira.

Valor: Há uma demanda para recompor os órgãos de fiscalização e segurança na Amazônia?

Dino: Temos o crescimento de uma espécie de combo de crimes na Amazônia, isso é grave, abrangendo tráfico, garimpo ilegal, exploração ilegal de madeira, articulação entre narcotraficantes, garimpo ilegal, pesca ilegal. Hoje você tem a presença de organizações criminosas na Amazônia. E estamos falando de 30 milhões de pessoas que moram nessa região. Sob a perspectiva da soberania nacional e da segurança pública, resolvemos criar essa diretoria especifica de repressão a crimes ambientais.

Valor: E qual será o papel das Forças Armadas, que atuam na região?

Dino: Tenho conversado com o futuro ministro da Defesa, José Múcio, porque temos essa parceria com as Forças Armadas e com Estados e municípios. Vamos estruturar mais bases físicas para ocupar o território e deixar claro a mensagem de que atividades econômicas na Amazônia são bem vindas, desde que ocorram nos termos da lei.

Valor: Diante dos atos de vandalismo da noite de segunda-feira, há risco para a segurança na posse do presidente Lula?

Dino: A resposta está no que aconteceu no momento da diplomação [no dia 12]. Houve um planejamento, a diplomação ocorreu na mais absoluta tranquilidade, mesmo com esses eventos violentos, extremistas. Não houve nenhum tipo de ameaça à integridade física do presidente eleito. Então o retrospecto relativo a este momento mostra que não há o que temer em relação à ocorrência da posse, ela vai acontecer normalmente, vai ser festiva e tranquila porque há um planejamento para isso.

Valor: Há receio de que a ocorrência de novos atos leve o presidente Bolsonaro a editar um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que impeça grandes eventos na Esplanada, prejudicando a festa da posse?

Dino: Não existe esse risco, porque o decreto de GLO depende da anuência do governador Ibaneis Rocha [do Distrito Federal] e, para isso, ele teria que reconhecer que a polícia dele não tem condições de manter ordem pública. E eu falei com ele várias vezes e ele reiterou o contrário, de que a polícia do GDF tem a absoluta condição de manter a ordem pública. Então não tem concordância do GDF para a GLO. (Andrea Jubé – Valor Econômico)