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O Brasil chega ao quarto ministro da Saúde em um ano de pandemia e 300 mil mortes pela covid-19. Confrontados pelo presidente Jair Bolsonaro por suas decisões de isolamento social, os governadores enfrentam hospitais lotados, falta de medicamentos e oxigênio, além de doses insuficientes de vacinas que atrasam a imunização.

Para falar desses temas e do que esperar do enfrentamento da pandemia depois da reunião dos Três Poderes com representantes dos governos estaduais, e da aglutinação empresarial na crítica à condução do governo federal, a Live de Valor recebeu, nessa quinta-feira, dia 25, às 11h, o governador do Maranhão, Flávio Dino. Ex-juiz federal, e ex-deputado federal, Flávio Dino foi reeleito ao governo do estado em 2018.

A entrevista foi conduzida pela colunista do Valor, Maria Cristina Fernandes. A transmissão foi feita pelo site e pelos canais do Valor no Youtube e no LinkedIn.

REUNIÃO DO PALÁCIO DO PLANALTO

“Eu considerei importante na medida em que aparentemente haverá um maior protagonismo dos presidentes do senado e da câmara, que podem atuar com mecanismos, instrumentos de moderação das políticas equivocadas lideradas pelo (presidente) Bolsonaro. Eu considero, assim, um passo. Irei participar, inclusive da reunião de amanhã (hoje), com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Mas, seguramente, está muito, muito longe de se caracterizar um divisor de águas, uma vez que o presidente da república continua o mesmo, e sobretudo a sua política continua a mesma. Então vamos tentar essa mediação para ver se, pelo menos, o ministério da saúde consegue ter uma atuação mais próxima dos estados, porque isso é vital para a população brasileira”.

COMITÊ GESTOR DA PANDEMIA

“O Bolsonaro não acredita no combate à pandemia, na necessidade de haver essa articulação federativa, e isto está muito claro, de modo que ele não vai priorizar isto. Acho que o que deve funcionar é essa articulação com os presidentes do Senado, da Câmara, do Supremo, que, afinal, foi o que produziu resultado nesse 1 ano. Tudo que aconteceu de positivo foi: ou pela ação dos governadores ou por determinação do Supremo ou por leis votadas no parlamento. Então, esse caminho que permitiu algum tipo de combate à pandemia é retomado agora, e acho que isso é uma espécie de redução de dano, uma vez que o Bolsonaro continua o mesmo. E hoje é o mesmo da semana passada, do mês passado, do ano passado, o mesmo de 20 anos atrás, o mesmo de 30 anos atrás. Então, não imagino que  teremos surpresas. Até rezo e torço para que tenhamos, mas não consigo acreditar no que se refere estritamente ao presidente da República.

– SE CONTINUA O MESMO, O QUE O LEVOU A CRIAR ESSE COMITÊ, SENDO UMA CONCESSÃO QUE ELE FAZ?

“O presidente da República valoriza essas performances, fotos, factoides, mas do que propriamente o trabalho sério. Basta olhar a sua agenda. O debate mais relevantes, seguramente, é o seu depoimento diário no cercadinho e aquelas lives de péssimo gosto nas quintas feiras à noite. Então, ele valoriza muito essas cenas. Não acredito que da parte dele vá além disso. Ele foi obrigado a fazer a reunião praticamente porque há pessoas lúcidas ao seu redor que o aconselharam, e esse profundo isolamento a que ele vem colocando o Brasil nessa posição no conceito das nações e ele próprio, progressivamente, vendo erodir as condições de sustentação do seu projeto político.

PRIMEIRA DOSE DA VACINA

“De um modo geral, os estados estão priorizando este momento de combate ao drama que estamos vivendo, e por isso mesmo a tendência mais forte é aplicar a primeira dose e confiar no provimento de doses adicionais, sobretudo do instituto Butantan, que tem sido até aqui a principal vertente de sustentação do programa nacional de imunização. Aqui no Maranhão vamos seguir este caminho: vamos aplicar as doses, e acreditamos que o Butantan vai honrar as doses necessárias à aplicação da segunda dose, assim como também estamos desejosos que a Fiocruz consiga ter um ritmo melhor, porque até aqui estamos entre esses dois pilares. Temos um instituto que funciona melhor, que é o Butantan, e nós temos ainda problemas na Fiocruz. Tenho muita crença de que as doses serão entregues e por isso mesmo estou aplicando as primeiras doses porque o momento exige. Na pandemia não há decisões ótimas, você apenas tem decisões razoáveis, porque é muito difícil, nesse ambiente em que a gente vive, ter soluções ideais. Então temos que adotar caminhos, nesse momento em que o vírus se expande muito fortemente, nós temos que ampliar a vacinação o máximo possível, com a escassez de meios, e tenho essa confiança do Butantan”.

REAJUSTES DOS CRONOGRAMAS DO MINISTÉRIO DA SAÚDE E PROMESSAS

“No que se refere ao Butantan, tem ocorrido de um modo geral o cumprimento das regras. Por isso é possível no caso da sinovac, coronavac adotar esse caminho. Em relação a outras, não. Por isso nós temos uma posição mais ousada, eu diriam em relação ao Butantan, e uma posição mais cautelosa em relação a outros fornecedores, até que nós tenhamos o certo, que deveria ter sido obtido no segundo semestre do ano passado, que é a pluralidade plena de fornecedores, para que com isso, aí sim, nós tenhamos um fluxo sustentável de vacinação. Vamos ter isso, provavelmente, apenas no segundo semestre de 2021, quando deveríamos ter tido em janeiro; e esse é o principal vetor dessa tragédia, dessa perda absurda de vidas humanas, para uma doença, para uma doença grave, é verdade, mas também em face de decisões administrativas erradas, notadamente nestes casos da resistência ideologizada, inusitada, irresponsável que foi adotada no segundo semestre de 2020, quanto a vacinas”.

CONSÓRCIO DE GOVERNADORES E COMPRA DE VACINAS

“São 37 milhões de doses de vacina sputnik que foram compradas por estados do Nordeste e também da Amazônia. Os contratos estão assinados e estamos aguardando o fim dessa longuíssima transição entre o ministro que saiu, o que entrou – o que entrou parece que entrou ontem (anteontem), aparentemente -, para que nós tenhamos, aí sim, a reafirmação ou não desse compromisso do ministro Pazuello. Esperamos que ele seja reafirmado e nós defendemos o plano nacional de imunização. Nós queremos que isto funcione. Agora, se o novo entender, por alguma razão, que não deve manter o compromisso do ministro Pazuello, nós vamos assumir as vacinas, e aí, neste caso, efetuar os pagamentos. Não houve ainda nenhum pagamento, porque o contrato prevê pagamentos mediante entrega dos lotes de vacinas. O primeiro lote está previsto para abril, de modo que nós esperamos que nas próximas semanas o Ministério da Saúde se pronuncie: se desejará ou não assumir esses contratos no que se refere à vacina sputnik”.

INTERMEDIAÇÃO DO PRESIDENTE DO SENADO

“Se houvesse isso, equivaleria a uma cassação do mandato dos governadores. Por isso mesmo não vemos isso como uma relação de exclusão; ou seja, os governadores têm legitimidade plena para representar os seus estados, foram eleitos para isso, perante o executivo federal. Vamos participar dessas conversas, dessas reuniões lideradas pelo presidente  do Senado; consideramos um interlocutor qualificado, legitimado – o Senado é a casa da Federação -, porém, isso não exclui que o ministro da Saúde seja demandado por nós; e será, como todos os demais ministros foram. De modo que nós imaginamos como caminhos paralelos que sejam capazes de reforçar o principal: o Brasil não é uma confederação de estados soberanos, o Brasil é uma Federação e há autonomias subnacionais, mas, ao mesmo tempo, você precisa do poder central. Nós queremos isso. Paradoxalmente, nós, que somos inclusive oposição política ao governo Bolsonaro, queremos que o governo funcione. Por isso mesmo, não vamos deixar de demandar outras esferas do poder executivo, inclusive, claro, com muito destaque, o Ministério da Saúde”.

REUNIÃO COM RODRIGO PACHECO. E COM QUIROGA?

“Houve alguns diálogos informais; porém, não há, até agora, esse sinal de participação, de reuniões com governadores. Eu espero que isso aconteça o quanto antes. Na minha ótica, já deveria estar acontecendo hoje, porque quem está efetivamente no comando da crise sanitária do Brasil desde o primeiro momento são os governadores. São os governadores que têm os leitos hospitalares, os leitos de UTIs, que controlam o fluxo de vacinas… Então nós, infelizmente, estamos há um anos nos tornando especialistas nesta crise. Então, não vejo como alguém possa coordenar em nível nacional prescindindo do diálogo com estados e municípios que estão, nesse instante, com domínio pleno, factual, imediato do que se passa no que se refere às questões principais: assistência hospitalar, medidas sanitárias preventivas… mesmo a temática da vacinação… Espero que essa reunião, que infelizmente não acontecerá hoje, aconteça amanhã, sábado, domingo…”

MOBILIZAÇÃO EMPRESARIAL

“Eu acho altamente positivo que o setor empresarial brasileiro tenha essa participação mais alta. Eu próprio, aqui no nosso estado, em muitos momentos me valido dessa parceria. Quando nós, por exemplo conseguimos comprar respiradores da China, foi em razão da atuação de empresas privadas que nos auxiliaram desde a operação em território chinês, uma vez que nós não tínhamos apoio federal,  até a logística de transporte. Então, eu apoio todos esses movimentos empresariais, acho que são interessantes, que ajudam a que haja uma participação cidadã, atendem aos ditames da chamada responsabilidade social… considero, contudo, que isso deve se dar nos termos da lei, sempre priorizando o SUS, Sistema Único de Saúde. Agora, se querem e podem nos ajudar na logística de transporte, na locação de leitos… Inclusive na expansão do setor privado hospitalar, uma vez que temos no país todo a situação em que detentores de planos de saúde não conseguem entrar nos hospitais privados, que estão superlotados, uma vez que se você comparar a ampliação de leitos do sistema público com o sistema privado, você vai encontrar que o sistema público tem muito mais eficiência na locação de recursos e na geração de novos leitos, que o sistema privado. Há também questões de mercado, de rentabilização dessas empresas… então, nós achamos que o setor privado pode também nos ajudar: o setor privado no sentido mais amplo… e outros vários segmentos podem ajudar a impulsionar, por exemplo, o próprio setor privado da saúde, que, a essas alturas, também precisa expandir os seus serviços, a capacidade de atendimento, porque você tem uma sobre-demanda derivada do coronavírus, sobretudo com essa tragédia da nova cepa, ou também outras demandas que foram se acumulando, porque as pessoas continuam a ter outros problemas de saúde. Então eu acho que cartas dos empresários cobrando redirecionamento da política no Brasil, a crítica ao presidente da República, a pressão sobre o Congresso e medidas de apoio, como tem ocorrido esses movimentos todos, são ações muito importantes”.

COMPRA PRIVADA DE VACINAS

“Acho que a colaboração é bem vinda, nesse instante, para o plano nacional de imunização, ou seja, para o SUS, uma vez que ale atende ao princípio constitucional, que é o da equidade, da igualdade no acesso aos meios. Agora, ultrapassada essa fase, de grupos prioritários, de maior risco, etc, que acredito que vamos conhecer até o mês de junho, se Deus quiser, aí acho que pode haver, sim, essa abertura”.

ROUBOS DE VACINA EM POSTOS DE SAÚDE E ATUAÇÃO DA PF

“Trata-se de um desespero. O governo federal, com medidas negacionistas no que se refere inclusive a vacinas, fez com este seja o sentimento agora. Nós temos, inclusive, um debate sobre prioridade no âmbito do SUS. É muito difícil arbitrar isso. O critério do maior risco, por faixa etária, por comorbidades, por exposição é o critério mais justo. Nós temos que perseverar nisto, sem nenhuma exceção, e combater as ilegalidades; combater com a polícia, porque se trata de contrabando ou eventualmente até de outros crimes, formação de quadrilha, organização criminosa, corrupção, emprego irregular de verbas e rendas públicas. Então, você tem um acervo amplo de tipos penais que devem ser usados para que esse desespero, justo, legítimo, não descambe para práticas criminosas e antiéticas. Nós não podemos cultivar o salve-se quem puder, a lei do mais forte. A lei do mais forte é a lei da selva. O direito, a legalidade, o estado servem, exatamente, para que não haja o abuso de poder, público ou privado,  em favor de uma minoria abastada. Por isso, eu defendo hoje o PNI, defendo o SUS, é um mecanismo justo, é o que a lei manda. Posteriormente, aí sim, em outro momento, de maior estabilidade, como disse, acho que contribuições privadas são bem vidas, mas sem violar as regras civilizacionais do SUS e do PNI.

ROUBOS E PREOCUPAÇÕES DE GOVERNADORES

“Essa é uma questão que vai se colocando, porque nós estamos vendo essa possibilidade. No Maranhão já estamos todas as providências de reforço de segurança, porque se trata de um produto escasso, extremamente necessário. Então, nós temos uma equação econômica favorável, uma espécie de incentivo inclusive à formação dessas quadrilhas especializadas nesse tipo de delito. O caminho, sem dúvida, é diminuir a escassez, ou seja, aumentar a oferta, para diminuir o incentivo econômico; ou seja, a rentabilidade dos crimes, e ao mesmo tempo usar a repressão estatal. Nós temos todos os dias adotado providências quanto a isto, porque nessas páginas tristes e estranhas que estamos todos percorrendo se insere isto, de que eu nunca tinha ouvido falar. Eu vou fazer 53 anos agora e nunca tinha ouvido falar nisto. Esse é o momento que estamos vivendo, porque não houve um adequado planejamento e uma adequada execução do plano público de imunização. E vamos enfrentar isso nos próximos meses. E temos que conjugar os dois mecanismos: o mecanismo dissuasório, por intermédio da ampliação da oferta, e ao mesmo tempo a repressão estatal, por intermédio da polícia”.

CPI DA PANDEMIA

“A CPI deve ser instalada, uma vez que ela tem o número necessário de assinaturas. Não se trata de uma escolha, o presidente do Senado é obrigado a instalar. E creio que a CPI se fortaleceu extremamente com as declarações do ex-ministro Pazuello, revelando fatos gravíssimos. Fala em corrupção, usa inclusive termos, se não me engano, como propinas… ele usa um termo equivalente. Então, ele fala em corrupção, fala em lobby, pareceres falsos… Então, não há nenhuma dúvida sobre a necessidade do chamamento do ex-ministro Pazuello, para que ele explique essas denúncias. Aliás, todos os ex-ministros devem ser chamados, uma vez que nós temos responsabilidades a apurar. E é uma falsa a ideia de que isso atrapalha. O que atrapalha é você colocar debaixo do tapete fatos gravíssimos que estão acontecendo todos os dias, porque, efetivamente, há interesses privados, poderosos, presidindo insanidades. Não é apenas um ato patológico do presidente da República. Há negócios a serem investigados. Quem disse isso? Eu não. Quem disse foi o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Então, eu não tenho dúvidas de que a CPI precisa ocorrer”.

GOVERNADORES E EX-MINISTROS, QUEIXAS…

“Todos os ministros da Saúde do governo Bolsonaro foram pessoas extremamente pressionadas, de fora para dentro do ministério. A minha percepção é que eles não tiveram um dia de paz, pressionados por vários interesses: interesses internos ao próprio governo, interesses políticos, interesses econômicos, comerciais… Creio que eles devem ser chamados a falar sobre isso. Por que, por exemplo, houve essa inusitada escolha, num país de 212 milhões de pessoas, de comprar apenas um tipo de vacina? Essa é uma pergunta a ser feita. Quem foi que que tomou esta decisão? Por que houve tanta resistência em comprar a vacina da Pfizer? Por que houve tanta resistência em comprar a vacina Butantan? Terá sido apenas porque o presidente da República nutre ódio pelo governador de São Paulo? Então, são perguntas que já eram necessárias e que agora, com este depoimento do ministro Pazuello, tornam imprescindíveis, porque, de um modo ou de outro, nós não poderemos cometer o erro que nós cometemos em outros momentos da vida brasileira. Por exemplo: terminada a escravidão negra no Brasil, não houve uma transição adequada e os efeitos aí estão até hoje, porque não houve naquele momento a compreensão de que aquela página de barbaridades deveria ser adequadamente apurada, investigada e superada. A mesma coisa em relação à ditadura militar. Então agora são 300 mil mortos. Muitas mortes, é verdade, ninguém poderia evitar: só Deus. Por outro lado, nós sabemos que muitas, muitas pessoas morreram por decisões administrativas erradas, pela indicação irresponsável de remédios que não têm eficácia, pela sabotagem de medidas preventivas e também por má aplicação de recursos públicos. Eu já tinha conhecimento de que havia coisas estranhas nestes bastidores de pressões no Ministério da Saúde, e agora tudo isso é publico e deve ser apurado pelo Poder Judiciário, pelo Ministério Público, e, evidentemente, por uma CPI, sem prejuízo da ação administrativa. Quem foi que disse que investigação atrapalha? Transparência não atrapalha. O que atrapalha é a perpetuação de mecanismos de malversação de recursos públicos ou péssimas decisões administrativas, e por isso mesmo creio que o próximo passo é a instalação dessa CPI: sem espetáculos, sem ser algo que vise apenas criar fatoides… apenas um trabalho sério. E as famílias dos 300 mil mortos, até agora, são detentoras desse direito, de saberem por que o Brasil teve, até aqui, o pior combate à pandemia do mundo”.

POR QUE UMA ÚNICA VACINA?

“Pode ter sido apenas uma insanidade presidida por essa visão da geopolítica internacional. Pode ter sido isto. Mas pode também ter sido uma decisão presidida por interesses comerciais. Faço questão de usar o verbo correto: PODE. Mas é muito estranho. Eu não consigo entender que um país da dimensão do Brasil tenha feito essa escolha tão vergonhosamente errada. Lembramos que até a decisão do ministro Levandovisky, do Supremo, em uma ação dos estados, inclusive do Maranhão, em uma ação da OAB, não havia definição quanto, sequer, a vacina do Butantan. O presidente da República chegou a dizer, numa daquelas lives anedóticas, de péssimo gosto das quintas-feiras, que não iria dar dinheiro para Dória, como se fosse uma questão comercial e não uma questão sanitária. E foi só a decisão do Supremo, inicialmente, que aquele contrato, pré-contrato que havia sido rasgado, em outubro de 2020, pelo presidente da República, voltasse a valer. Isso para termos acesso à Coronavac. Então, isso tudo é muito estranho e deve ser apurado”.

RELAÇÃO COM O ITAMARATY

“Nenhuma. Não há nenhum empenho das embaixadas para que haja apoio a esse clamor das populações, e por conseguinte dos estados, para comprar insumos estratégicos, e isso me espanta. Quando houve, ano passado, aquela necessidade de comprar luvas, máscaras, respiradores, etc, eu nunca recebi nenhum telefonema, nada desse tipo, de alguma embaixada, oferecendo o setor comercial que existe em cada embaixada, para ajudar, para dar certeza, dar segurança jurídica às operações… não vejo, e isso é um dever do governo federal, uma vez que as relações internacionais são feitas pelo governo central. Esse vetor ajuda a explicar a dificuldade de abastecimentos estratégicos, inclusive no que se refere a vacinas. Não precisa ser muito informado e eu creio que no Itamaraty há muitas pessoas que têm muito mais informação do que eu, para saber que a China é um parceiro imprescindível para obtenção de imunizantes. Então, qual foi o gesto prático que o Itamaraty tomou para ajudar? Tomou para atrapalhar, ao longo desses tenebrosos dois anos de uma política externa inconstitucional. Eu espero que ele seja demitido. Nada de pessoal, claro, mas já vai tarde, já vai muito tarde, porque os danos que essa política interna inconstitucional e insensata estão aí, aos olhos de todos. Por isso, eu acredito que essa pressão é justa e necessária, inclusive para evitar outros danos ao Brasil, inclusive no que se refere, por exemplo, à temática ambiental, que terá muita força na agenda global pós pandemia”.

EXPIRAL DE ERROS, SINAL AMARELO E ABREVIAÇÃO DO MANDATO DE BOLSONARO

“Eu diria que o mandato presidencial entrou em modo semáforo amarelo, sinal amarelo. Quem disse isso hoje foi o presidente da Câmara, que tem a legitimidade constitucional para admitir ou não as dezenas, quiçá centenas, de pedido de impeachment que lá tramitam, todos ou quase todos lastreados na clareza do artigo 85 da Constituição Federal e na Lei 1079, de 1950. Bolsonaro é uma espécie de serial killer no que se refere ao cometimento de crimes de responsabilidade: ele comete praticamente todo dia. Então, acho que essa declaração do deputado Arthur Lira vai na direção de conferir uma maior plausibilidade política àquilo que juridicamente é inequívoco, porque o impeachment é presidido por esses dois fatores: você precisa dos fatores jurídicos, constitucionais e dos fatores políticos. Os primeiros sempre estiveram inequivocamente presentes, de várias formas. Os fatores políticos mais distantes, Agora, acho que houve o sinal amarelo. Espero que isso funcione como mecanismo de contenção do Bolsonaro. É preciso colocá-lo numa camisa de força institucional. Foi assim que eu interpretei, tanto a atitude do presidente do Senado quanto do presidente da Câmara, tentando colocar o presidente da República nessa espécie de camisa de força, para que ele chegue até o final do seu mandato”.

RESISTÊNCIA DO CONGRESSO A MOURÃO

“Eu não tenho nenhuma dúvida de que o vice-presidente Hamilton Mourão teria melhores condições de que o Bolsonaro para liderar o país neste momento. Não que eu concorde com seu ideário, com sua visão política – ele é uma pessoa assumidamente do espectro mais à direita da política brasileira e eu tenho uma posição bem de frente -, porém, ele teria – e eu sou testemunha disso – a capacidade de dialogar em termos razoáveis em relação às outras posições políticas e administrativas. Não sei a quantas anda a relação dele com o Congresso Nacional. Sempre isso é um fator que pesa. Mas, considerando assim em termos abstratos, em termos ideais, eu não tenho dúvidas de que um eventual governo Mourão seria mais apto a tirar o Brasil deste pântano terrível em que ele se encontra. Exatamente porque tem uma capacidade melhor de ouvir, de elaborar, de refletir… obviamente  muito mais capacidade cognitiva, muito mais talento, eu diria… muito mais devoção ao trabalho. Eu acho que ele teria pelo menos uma agenda de trabalho, de reuniões, ouvir as pessoas… o que falta hoje ao Brasil. Eu diria que seria uma mudança bastante profícua. Veja só: eu jamais votaria no vice-presidente para ser presidente da República, mas comparando com Bolsonaro é quase a distinção entre civilização e barbárie: tal é o tamanho da barbárie que Bolsonaro representa”.

TEMOR DE MILITARIZAÇÃO

“Muito difícil ter um governo mais militarizado ainda do que o atual. Nem na ditadura militar nós tivemos tanta militarização. Então eu acho que mesmo que mantivesse essa inconstitucional ocupação de cargos ilícitos de militares na proporção atual, tamanha é a gravidade que nós temos hoje, que seria já razoável”.

IMPEACHMENT DESFOCA?

“Esse argumento vem sendo usado há um ano. Se os pedidos de impeachment tivessem sido acolhidos há um ano, o Brasil estaria em melhores condições nesse ambiente de severa pandemia. Ou seja, esse argumento vem sendo usado e as condições são piores. E não só na pandemia. Estamos vendo uma depreciação das condições econômicas do país. Veja: nós estamos entrando em abril e não tem sequer orçamento votado no parlamento brasileiro. Desorganização das cadeias de oferta e demanda. Ninguém sabe o que vai acontecer com as taxas de juros, as dificuldades com o câmbio, inflação de alimentos. Então, não é apenas – e já seria muito grave – o quadro da pandemia em si. É o conjunto da obra. Esse argumento está sendo usado há um ano para supostamente conferir uma certa previsibilidade e certeza, que são atributos necessários aos investimentos, e esses fatores nunca aparecem. Então, em nome da previsibilidade e da certeza, dos quais o mercado precisa, nós estamos na verdade sabotando a apresentação desses fatores, que de fato o Brasil precisa, porque o principal vetor de instabilidade, o principal vetor de incertezas, hoje, para o investimento público, para o investimento privado, para a gestão econômica, para os contratos, para as instituições, para a democracia, para a pandemia reside em um equívoco monumental representado pela mais alta autoridade do país. Por mais que nós façamos – governadores, prefeitos, empresários, Congresso, Supremo -, nós não podemos ocupar o lugar do presidente da República, que é o chefe do estado e do governo, é o chefe da nação. Então nós podemos muito, temos feito muito, mas não podemos tudo. Por isso eu considero que é um argumento equivocado. O Brasil estaria melhor hoje se um ano atrás tivesse aberto um processo de impeachment. Nós não estaríamos empilhando todos os dias milhares e milhares de tragédias na porta dos lares do povo brasileiro. Então, eu acho que o argumento não se sustenta. E, juridicamente, não é algo discricionário, não é algo que você escolhe ou não. Esse é um mecanismo que deve ser ativado quando crimes são cometidos. Impeachment não é um voto de desconfiança do parlamentarismo: impeachment é uma sanção constitucional em relação ao chefe do poder executivo que comete crimes de responsabilidade. A palavra é essa: crimes. Então, como nós vamos conviver com crimes? Podemos conviver em silêncio, com crimes e com criminosos exercendo o poder”?

OMISSÃO DO CONGRESSO?

“Acho que houve uma má avaliação desses fatores políticos. Eu acho que às vezes há um interesse daqui, dacolá, mas esses próprios interesses não se sustentam. Me referi ao mercado. Me refiro também aos atores políticos, alguns imaginando que a sombra do poder iria de algum modo os beneficiar. Bom, não trato de benefícios individuais – ok, isso não me compete e espero que não esteja ocorrendo -, mas benefícios políticos, de um governo desacertado como este, de um governo desastrado como este, governo que o Brasil vai ladeira abaixo? Que benefício haverá? Será que há políticos no Congresso que vão sustentar isso? Até quando? Então, não imagino realmente que haja vantagem dessa recusa a debater um imperativo constitucional que é a sanção àqueles que estão cometendo atos ilícitos”.

POSTURA DE RODRIGO MAIA

“Eu concordo em muitas coisas com o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, e diria que se nós chegamos até aqui devemos a leis muito importantes que foram sustentadas por ele, assim como pelo ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre, inclusive derrubando vetos do presidente da República. Porém, essa concordância não é total. Neste caso, há uma discordância profunda, e disse isso a ele na época: que ele acolhesse, cumprisse o mandamento constitucional, instaurasse o processo de impeachment e que cada um lidasse com suas responsabilidades. Acho que houve uma avaliação errada do ex-presidente Rodrigo Maia. Digo isso com muito respeito, muita fraternidade, muito apreço… faz parte da história. Eu espero que o Arthur Lira, em algum momento, veja isto. Acho que o Brasil, em termos ideais, na minha avaliação, não merece mais dois anos com Bolsonaro. Essa é a questão central, nós temos colocado com muita clareza. O povo brasileiro merece mais dois anos de desgoverno, de irresponsabilidade, de piadas de mau gosto, de falta de uma agenda de trabalho decente? Não. Há as condições jurídicas para instauração de um processo por crime de responsabilidade? Sim. Agora, se cada parlamentar vai votar de um jeito ou de outro, aí é responsabilidade de cada um. Mas creio que os atores políticos principais devem dar uma resposta à nação que vá além do sinal amarelo. Repito: saúdo o sinal amarelo, já acho positivo, mas acho insuficiente”.

BOLSONARO FORA DO SEGUNDO TURNO

“Hoje é uma tendência bastante forte e caminha para se tornar predominante, uma vez que há um esvaziamento do poder presidencial. Em que momento vimos um ministro da política externa, o ministro do Itamaraty, sendo unanimemente repelido pelo Senado da República? Em nenhum momento da longa tradição da gloriosa casa Rio Branco isso aconteceu. E esse ministro, ladeado por um tal assessor, com aquele tipo de comportamento, indecoroso, no Senado Federal! Então isso realmente amplia essa repulsa. Claro que temos ainda muitas coisas a acontecer. Mas a tendência, ou na linguagem do mercado, o viés do presidente Bolsonaro é um viés de baixa, acredito eu.

LULA E INTERLOCUÇÃO COM NOMES DO CENTRO

“Eu acho que o ex-presidente Lula tem a respaldá-lo a prática, que é o critério da verdade. Ele, quando foi presidente da República, não fez um governo extremista. Pelo contrário, fez um governo de entendimento nacional, um governo de pactuação nacional. Acho que essa memória, em algum momento, vai se tornar mais vívida, inclusive para aqueles que, embora mais beneficiados largamente, tenham passado, estranhamente, a estigmatizar o ex-presidente Lula. Acho, portanto, que ele tem condições de avançar essa modulação da sua posição política com o chamado Centro. De todo modo, eu, como militante do campo progressista popular do Brasil situado, portanto, mais à esquerda do espectro político, acho altamente positivo que haja essa organização do chamado Centro da política brasileira. Ele sempre foi imprescindível, desde os governos de Getúlio Vargas, de Juscelino Kubistchek, até na Constituinte, na campanha da anistia, no próprio governo do ex-presidente Lula, o Centro forte ajuda o nosso campo político, porque, inclusive, fecha espaço para essas coisas que estão acontecendo. Então, eu não vejo como problema. Como brasileiro, como alguém que torce pelo Brasil, que luta pelo Brasil, que é o meu caso, eu não acho ruim não. Eu espero, inclusive, chamar do Centro essas posições que são diferentes das nossas, como, por exemplo, que se referem ao tamanho do estado na economia, ao papel do serviço público, do investimento público, dos bancos públicos. São distinções, mas distinções que estão na moldura da democracia. São distinções que estão abrangidas pela gramática e pelo dicionário da civilização. É diferente daquilo que temos hoje no poder. Então, eu não vejo o Centro como problema. Se houver um segundo turno entre esquerda e o Centro, eu acho muito bom. Pelo menos estaremos livres da continuidade e do horror que nós temos hoje no poder”.