As redes sociais estão entre as principais vilãs da nossa falta de foco
Johann Hari estava preocupado com o afilhado, que largou a escola e tinha o costume de interromper boa parte de suas conversas para rolar o feed nas redes. Então, o jornalista e escritor britânico sugeriu um trato: ele levaria o adolescente para conhecer Graceland, a enorme mansão de Elvis Presley — de quem o garoto tinha sido fã quando criança — se o jovem conseguisse ficar longe das mídias sociais durante toda a viagem. Ele topou. Porém, a primeira coisa que fez quando o avião pousou em solo estadunidense foi checar as atualizações do celular. E assim permaneceu, a cara grudada no aparelho durante todo o passeio.
– Como manter o foco
R$ 150 mil pela sua atenção.
– Como as redes sociais alteram a nossa percepção de tempo.
Com essa pequena história, Hari inicia seu livro best-seller “Foco Roubado” (Vestígio, 2024), uma profunda investigação sobre a dificuldade contemporânea de manter a atenção no que quer que seja. Mas a obra, elogiada por personalidades como Oprah, Hillary Clinton e os atores Emma Thompson e Chris Evans, vai muito além do vício de um adolescente em redes sociais. Por mais que o autor tenha se irritado com o comportamento do afilhado, logo percebeu que aquilo, assim como a dificuldade crescente que ele mesmo sentia para manter o foco em suas leituras, apontava para algo maior.
O interesse no tema o levou a viajar por várias partes do mundo, de uma favela do Rio a uma cidadezinha da Nova Zelândia que descobriu uma forma radical de recuperar o foco. Em conversas com mais de 200 especialistas e estudiosos do assunto — entre eles, funcionários arrependidos do Google, neurocientistas e uma autoridade em sono —, Hari descobriu que as redes sociais estão sim entre as principais vilãs da nossa falta de foco, mas não são as únicas.
“Dormimos cerca de 20% menos do que há um século. Então, mesmo que nada mais mudasse, isso já estaria causando uma enorme crise de atenção”, conta em entrevista a Gama. Para englobar todos os fatores que nos tragaram para essa crise sem precedentes, o jornalista dividiu o livro em 12 capítulos, que refletem as forças que nos impedem de focar como no passado — e que acabam afetando ainda mais os jovens.
A falácia da multitarefa, a exaustão física e mental, a perda da capacidade de divagar, o crescimento de distúrbios como estresse e ansiedade, e até o que comemos e o ar poluído que respiramos impactam nossa atenção, aponta Hari. Além, é claro, das tecnologias, que passaram não só a fazer parte das nossas vidas, mas a modificá-las de maneira mais e mais profunda.
O problema, segundo ele, é que somos constantemente incentivados a nos culpar por isso, passando a nos considerar preguiçosos e incompetentes, e a buscar alternativas individuais para lidar com a questão. “A crise não existe por causa dos seus hábitos ruins, mas porque fatores sistemáticos estão atacando nossa atenção”, afirma. Em especial as Big Techs, considera, que ganham mais dinheiro conforme nos mantêm presos aos seus algoritmos.
De um hotel em Las Vegas onde, apenas dois dias após as eleições norte-americanas, consegue ver a Trump Tower pela janela, Hari admite que seu humor atual não é dos melhores e discorre sobre os perigos da falta de atenção até mesmo para a democracia. No papo com Gama, fala também sobre a importância da atenção para sermos pessoas mais realizadas e defende a coletividade para buscar uma mudança radical.
A crise não existe por causa dos seus hábitos ruins, mas porque fatores sistemáticos estão atacando nossa atenção
G |Você conta no começo do livro a sua história com seu afilhado e os impactos da falta de foco para a educação dele. Foi isso que te inspirou a pesquisar tão a fundo o tema?
Johann Hari |
Não só isso. Percebi que ler um livro e outras tarefas que exigiam foco estavam ficando mais difíceis. Ainda conseguia fazer, mas era cada vez mais como tentar subir uma escada rolante que está descendo. E isso acontece com um grande número de pessoas em todo o mundo. Em média, o trabalhador de escritório hoje se concentra em uma tarefa por menos de um minuto. Na Grã-Bretanha, para cada criança que foi identificada com problemas de atenção quando eu tinha sete anos, agora há 100 com o mesmo problema. A situação com meu afilhado me fez perceber que era particularmente ruim com os jovens, mas acontece com todos nós. Por um longo tempo, tive medo de investigar, porque pensava: não tenho força de vontade, não sou forte o suficiente para resistir a essas tentações. Mas fui incentivado pela experiência terrível com meu afilhado.
G |O que essa experiência te mostrou?
JH |
Acabei fazendo uma grande viagem pelo mundo todo, de Moscou a Miami e Melbourne. Passei muito tempo no Brasil também, e entrevistei mais de 200 dos principais especialistas em atenção e foco. O que aprendi é que há evidência científica de 12 fatores que podem melhorar sua atenção ou piorá-la — e muitos dos que podem piorar estão aumentando. A tecnologia é a primeira coisa em que as pessoas pensam, mas eles são muito abrangentes. A comida que comemos, as escolas dos nossos filhos, a poluição do ar, a forma como nossos escritórios são projetados… há uma gama ampla de fatores que prejudicam nossa atenção. Uma vez que entendemos isso, podemos começar a obtê-la de volta como indivíduos e sociedade.
G |Como você mencionou, a primeira coisa em que pensamos é na tecnologia e nas mídias sociais. Elas são o principal fator?
JH |
O Dr. Charles Czeisler, de Harvard, um dos maiores especialistas em sono do mundo, me explicou que dormimos cerca de 20% menos do que há um século. Então, mesmo que nada mais mudasse, isso já estaria causando uma enorme crise de atenção e foco. O tempo todo em que você está acordado, seu cérebro acumula algo chamado lixo metabólico, que um cientista apelidou de cocô de células cerebrais. Quando entra em sono profundo, um fluido aquoso lava e carrega esse cocô para fora do corpo. Se você não dorme direito, seu cérebro não tem chance de se limpar. Você passa a andar por aí com um cérebro entupido. Se ficar acordado por 19 horas, sua atenção se deteriora tanto quanto se estivesse bêbado. Quando você não dorme direito, está muito mais propenso a passar o dia seguinte rodando nas redes sociais, a comer mal, e fica mais vulnerável a interrupções. Então, todos esses fatores se acumulam e qualquer um deles prejudicaria sua atenção. Mas coletivamente, vivemos uma tempestade perfeita de degradação cognitiva.
G |O que isso significa no caso das redes sociais?
JH |
Sua atenção não sofreu um colapso, ela foi roubada. Uma das pessoas que me ajudaram a entender foi o professor Earl Miller, do MIT, um dos maiores neurocientistas do mundo. Ele me ensinou que o cérebro humano só consegue pensar conscientemente em uma ou duas coisas por vez. Essa é uma limitação fundamental do cérebro, que não mudou em 40.000 anos. Mas o adolescente agora acredita que pode acompanhar seis redes sociais ao mesmo tempo. O que ele faz é um malabarismo, que tem um custo muito alto, um custo cognitivo. Quando você alterna entre tarefas, se lembra menos do que faz, comete mais erros e é muito menos criativo. A empresa HP contratou um cientista para estudar seus trabalhadores. Ele os dividiu em dois grupos. O primeiro foi orientado a continuar uma tarefa sem ser interrompido. E o segundo, enquanto trabalhava, precisava responder a uma carga pesada de e-mails e telefonemas. Basicamente como a maioria de nós. No final, o cientista mediu o QI de ambos. O grupo que não foi interrompido fez 10 pontos a mais do que o outro. Se você e eu ficássemos chapados de maconha, nossos QIs cairiam cinco pontos. Então, no curto prazo, ser constantemente interrompido é pior para sua inteligência do que ficar chapado.
G |Hoje sinto que não consigo passar muito tempo pensando num mesmo assunto. Qual a importância de ter esses momentos?
JH |
Para pensar no motivo mais profundo pelo qual isso importa, sugiro pensar em qualquer coisa que você já conquistou na vida da qual se orgulha, seja começar um negócio, ser um bom pai ou aprender a tocar violão. Isso exigiu uma quantidade enorme de foco e atenção duradouros. Quando sua capacidade de focar se deteriora, a habilidade de atingir seus objetivos e resolver problemas também. Você se sente pior consigo mesmo porque é menos competente quando não consegue prestar atenção. A atenção está no cerne de todas as conquistas humanas. Quando você a recupera, é como recuperar seu superpoder. No momento, vivemos em um ambiente cheio de um equivalente à kryptonita, com o qual precisamos acabar.
G |A coisa de nos manter constantemente distraídos, pulando de um post para outro no feed, é uma estratégia de negócios para as big techs?
JH |
A estratégia do KFC não é te deixar obeso, e sim que você coma o máximo de frango frito possível. Falei com muitas das pessoas que projetaram aspectos-chave do nosso mundo, e o que mais me impressionou foi o quão culpadas algumas se sentiam pelo que fizeram. Nunca vou esquecer o que um cara chamado James Williams, que trabalhava no Google, me disse. Em uma conferência com pessoas de tecnologia, ele fez um pedido: se houver alguém aqui que queira viver no mundo que estamos criando, por favor levante a mão. Ninguém levantou. Pessoas do Vale do Silício me explicaram que o TikTok ou qualquer uma das principais mídias sociais ganha dinheiro de duas maneiras. A primeira é a publicidade. A segunda e mais importante é que tudo que você faz nesses apps, suas mensagens privadas, é escaneado e classificado por algoritmos de IA para descobrir quem você é, o que te deixa feliz, triste, excitado, bravo… O mais importante é descobrir o que te manterá rodando o feed. Porque toda vez que você abre o app, eles ganham dinheiro.
G |Mas como fazer frente a essas empresas?
JH |
Toda a genialidade da IA e dos algoritmos é voltada para apenas uma coisa. São máquinas projetadas para hackear e colher sua atenção. É como meu amigo Tristan Harris, que também trabalhava no Google, explicou quando testemunhou perante o Senado: você pode tentar ter autocontrole, mas há 10 mil engenheiros do outro lado da tela trabalhando duro para miná-lo. Quando você ouve isso pela primeira vez, pensa que estamos presos na matrix. Mas a mídia social não precisa funcionar dessa maneira. Quando eu era criança, a gasolina no mundo inteiro continha chumbo, e respirar isso tinha um efeito terrível na atenção das crianças. O que aconteceu foi que grupos de mães questionaram: por que estamos permitindo que essas empresas estraguem o cérebro dos nossos filhos? Elas não queriam proibir os carros e voltar a andar de carroça. Nenhum de nós está tentando proibir a tecnologia. A ideia é substituir por algo que não prejudique nossa atenção, mas faça o mesmo trabalho. E essas mães lutaram muito. Não há mais chumbo na gasolina. Como resultado, as crianças têm cinco pontos de QI a mais. Esse é um modelo importante do que temos que fazer agora.
G |Em nível pessoal, como se proteger?
JH |
Precisamos lidar com os 12 fatores que estão prejudicando nossa atenção de duas formas: defesa e ataque. Há muitas coisas que podemos fazer imediatamente para nos defender. Tenho um cofre que bloqueia seu telefone. Eu o uso três horas por dia para escrever. Não teria terminado meu livro mais recente sem ele. E não recebo meus amigos para jantar a menos que concordem em colocar os telefones nessa prisão. No começo, é difícil. Mas o prazer de saber que vamos ouvir e ser ouvidos é muito maior do que qualquer atualização de merda no Instagram. Outro exemplo é um app chamado Freedom. Se você for viciado no Instagram ou eBay, ele te proíbe de entrar em qualquer um desses sites pelo tempo que pedir. Tenho as redes sociais permanentemente bloqueadas no meu telefone. Não quero que, no meu funeral, as pessoas digam: Johann passou muito tempo no Instagram.
G | E coletivamente?
JH |
Essas mudanças fazem uma diferença grande, mas não vão resolver o problema. A crise não existe por causa dos seus hábitos ruins, mas porque fatores sistemáticos estão atacando nossa atenção. Em algum momento, temos que partir para a ofensiva. Já estive em lugares que começaram a fazer isso, da França à Nova Zelândia. Devemos regular as mídias sociais para que não sejam projetadas para hackear e invadir nossa atenção. Há muitos passos a dar tanto individualmente quanto como sociedade, mas isso requer uma mudança psicológica. Quando eu não conseguia me concentrar, ficava bravo comigo mesmo. Quando observava crianças que não conseguiam se concentrar, ficava bravo com elas. Temos que parar e começar a ficar bravos com as forças que fizeram isso conosco. Não somos camponeses medievais implorando ao rei Musk e ao rei Zuckerberg por algumas migalhas de atenção. Somos cidadãos livres de democracias duramente conquistadas, no caso do Brasil. Somos donos de nossas próprias mentes e juntos podemos recuperá-las se quisermos.
G |Você citou no livro os algoritmos como responsáveis pela ascensão de líderes como Bolsonaro. Dá para fazer uma conexão entre a falta de foco nas redes e a reeleição de Trump?
JH |
O que os algoritmos descobriram foi uma verdade profunda sobre a natureza humana, chamada de viés da negatividade. As pessoas olham mais para coisas que as deixam com raiva do que para as que as deixam felizes. Se você já viu um acidente de carro, sabe o que quero dizer. Hoje isso desempenha um papel enorme nos níveis de ansiedade dos adolescentes. A professora [e psicóloga norte-americana] Jean Twenge descobriu que uma adolescente norte-americana hoje tem os mesmos níveis de ansiedade que uma jovem tinha na década de 1950 quando era internada em um hospital psiquiátrico. Agora imagine uma sociedade inteira onde pessoas gentis e decentes são abafadas, enquanto as raivosas e cruéis recebem um megafone. Não precisa imaginar, fazem alguns dias que Trump foi reeleito. Na noite em que Bolsonaro virou presidente, o que seus apoiadores gritavam? ‘Facebook, Facebook, Facebook.’ Sabiam que ele era um deputado decadente até que o algoritmo começou a promovê-lo. Não estou dizendo que é o único fator. Obviamente, há muitas coisas, mas foi um elemento importante.
G |Uma sociedade com menos foco é uma sociedade menos democrática?
JH |
Cientistas de dados do Facebook descobriram que um terço das pessoas se juntaram a grupos neonazistas na Alemanha porque a rede recomendou. A atenção, a princípio, parece uma coisa pequena. Mas, quando você olha com mais detalhes, isso nos afeta em todos os níveis. A democracia é a forma mais preciosa de atenção. É atenção coletiva. Se não podemos prestar atenção juntos, de forma sã e clara, não podemos sustentar a democracia. Os brasileiros sabem o que significa isso, e é horrível. Então, precisamos enfrentar as 12 forças que estão minando nossa atenção para alcançar o máximo que pudermos em nossas vidas. E o mais importante: para preservar nossas democracias, que são frágeis e podem quebrar. Estou em um hotel onde literalmente posso ver a Trump Tower. É como se ele estivesse me ameaçando.
G |Uma infinidade de notícias impactam nosso dia a dia, sejam políticas ou ambientais, como o aquecimento global. Fica mais difícil focar num momento em que estamos tão conscientes de tudo isso?
JH |
Há muitas evidências de que o estresse prejudica a atenção. Imagine que você está andando pela rua e é atacado por um urso. Nas semanas seguintes, acharia muito mais difícil se concentrar na leitura de um livro, porque seu cérebro fica mais vigilante. Neste ambiente estressante, todos estamos nos tornando mais vigilantes. Significa que é mais difícil entrar num modo de foco profundo. Você só consegue isso quando se sente seguro. Só um idiota ficaria sentado lendo um romance no meio de um tiroteio. O professor Michael Posner, da Universidade de Oregon, descobriu que, se você for interrompido por uma mensagem de texto, leva cerca de 23 minutos para recuperar o mesmo nível de foco. A maioria de nós não consegue passar 23 minutos sem interrupção. Então, estamos constantemente operando em um nível mais baixo de capacidade cognitiva.
G |Como fazer isso na prática? Já tem gente lutando por essa causa?
JH |
Não temos que aceitar. Já houve tempos sombrios antes, e a resposta não é o desespero, mas nos unirmos sistematicamente para lidar com os problemas. Quando me sinto desesperado, penso nas minhas avós. Hoje eu tenho 45 anos. Quando elas tinham 45, não tinham permissão para votar ou ter contas bancárias, porque eram mulheres casadas. Era legalmente permitido a seus maridos estuprá-las. As vidas das minhas avós foram desfiguradas pelo sexismo e misoginia. Mas mulheres e alguns homens lutaram para que isso mudasse. Acabamos de sofrer uma derrota terrível nos EUA, mas a vida da minha sobrinha não é nada parecida com a da minha avó. A Austrália acaba de aprovar a primeira lei que proíbe mídias sociais para crianças. Eu tenho uma fotografia da minha mãe com 10 anos, fumando um cigarro. Isso era visto como normal na época. Vamos lembrar que demos às crianças celulares carregados com esses apps da mesma forma que relembramos essa fotografia. Há muitos passos importantes acontecendo em todo o mundo. A luta começou, todos precisamos nos juntar a ela. Nós podemos resolver esse problema.
(Leonardo Veiga – Gama Revista).