-->

Por Sergio Tamer

Há que se questionar sobre as razões para a manutenção de elevados índices de violência contra as mulheres, em que pese a existência de uma legislação avançada e tão justamente enaltecida como a “Lei María da Penha” e de outros mecanismos legais de enfrentamento como a Convenção de Belém do Pará, em vigor desde 27 de dezembro de 1995; e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, que foi sancionada desde 2 de março de 1984. Por sua vez, em 9 de março de 2015a Lei nº 13.104, incluiu a qualificadora de feminicídio no código penal brasileiro. E não só: a Lei nº 10.778 de 24 de novembro de 2003, estabeleceu a notificação compulsória em caso de violência contra a mulher verificada em serviços de saúde.

Mas a despeito desse forte aparato legislativo, os dados da Organização Mundial de Saúde apontam para uma outra realidade: o Brasil situa-se na posição número (5) em homicídios contra as mulheres em uma lista de (83) países, estando à sua frente países como El Salvador, Colômbia, Guatemala y Rússia.  E no Maranhão, dia após dia, sucedem-se os registros policiais de feminicídio.

Levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) indicaque ao menos 10.655 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil, entre os anos de 2015 e 2023. Segundo o relatório, o número de feminicídios no país cresceu 1,4% entre 2022 e 2023 e atingiu a marca de 1.463 vítimas no ano passado, indicando que mais de quatro mulheres foram vitimadas a cada dia. As pesquisadoras apontam que esse é o maior número da série histórica iniciada pelo FBSP em 2015, quando entrou em vigor a Lei 3.104/15. A legislação vigente qualifica o feminicídio como um crime que decorre de violência doméstica e familiar em razão da condição de sexo feminino, em razão de menosprezo à condição feminina, e em razão de discriminação à condição feminina.

Diante desses números, é de se indagar o porquê de não funcionarem adequadamente as políticas públicas que deveriam ser capazes de preservar e de garantir as condições básicas de vida para meninas e mulheres? Por que as leis e os Tratados não servem de freio para esse descalabro estatístico, tão real quanto tenebroso?

Cultura social: a mudança necessária

Para os especialistas, a violência contra a mulher é o resultado de uma cultura patriarcal que está arraigada aos fundamentos da sociedade. É uma cultura que privilegia o homem, colocando-o no espaço de poder, e criando uma desigualdade estrutural. Todavia, há outras projeções no inconsciente coletivo, algo que está introjetado no imaginária social como resultado de construções historicamente disseminadas. Assim, a imagem feminina foi sendo deturpada como pecadora e propagadora de maldades. Na cultura grega, a misoginia no mito de Pandora: a mulher que espalhou o mal no mundo. Na cultura judaico-cristã, Eva foi a segunda opção do Criador e, além disso, responsável pela expulsão de Adão do paraíso, resultando em todos os males que a humanidade sofre até hoje.

Na Idade Média, houve uma histeria coletiva impulsionada pela religião Católica quando centenas de milhares de mulheres foram queimadas na fogueira, acusadas de praticar bruxaria. A Inquisição atuava com base em supostas provas oferecidas por testemunhas que estavam convictas da condição de “bruxa” das acusadas. Foi uma narrativa muito difundida para legitimar a perseguição, tortura e morte de mulheres.

Portanto, as leis são necessárias assim como as políticas públicas, mas há que se ter uma mudança na cultura social para que possa haver uma modificação na estrutura social misógina das sociedades, sobretudo pela influência nefasta de algumas seitas e religiões.

A palavra da ONU

Para o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, as políticas públicas para o combate à violência de gênero devem considerar uma série de recomendações expressas no documento apresentado, onde se destaca que o fato de permanecerem estáveis, nos últimos cinco anos, as taxas relacionadas aos assassinatos de mulheres e meninas, sugere “que as mulheres continuam suportando a maior carga de vitimização como resultado dos estereótipos de gênero e da desigualdade”. E aponta, como uma das medidas concretas para envolver homens e meninos na eliminação dessa violência de gênero, (1) a promoção de educação a meninos e meninas na direção da igualdade de gênero, desde os primeiros anos escolares; (2) a implementação de programas dentro das comunidades locais destinados a questionar os estereótipos de gênero existentes, discutir as noções de gênero e masculinidade, e transformar os papéis de gênero.

Assim, para além da ampla legislação que temos e das políticas públicas existentes, precisamos de uma autêntica mudança na cultura misógina historicamente pulverizada na sociedade. Como promovê-la? A implementação do receituário do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) já seria um bom começo…

Sergio Tamer é professor e advogado, presidente do Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública – CECGP e diretor-geral da SVT Faculdade. É mestre em Direito Público pela UFPe; doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Salamanca; e pós-doutorado em Estudos Interdisciplinares SobrePolíticas Públicas e Segurança, pela Universidade Portucalense.

One thought on “A lei e as políticas públicas: por que o feminicídio não está contido?

  1. Excelente avaliação quanto à falta no contexto normativo sobre o crime de feminicídio e da ausência de políticas pública voltadas nesse sentido, deixando a sociedade e principalmente as mulheres, desprovidas de uma maior segurança. O posicionamento chega em boa hora, pois os índices de violência contra as mulheres tem sido crescente, infelizmente. Parabéns Dr. Sérgio TAMER pela pesquisa de rico conteudo jurídico.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *