Dos 31 ministros que hoje compõem o STJ (Superior Tribunal de Justiça), 15 têm parentes que atuam como advogados em processos que tramitam na Corte.
São 24 filhos, sobrinhos, enteados e esposas de ministros que assinam ações, fazem sustentação oral em plenário e são recebidos em audiência nos gabinetes.
Levantamento feito pelo UOL aponta que, ao todo, os parentes dos ministros assinaram pelo menos 4.406 ações ajuizadas no tribunal. Dessas, 889 estão em tramitação.
O número equivale a 0,3% do acervo, composto por 331.932 processos. A quantidade pode ser maior, porque os parentes de ministros podem representar clientes em ações sigilosas.
O STJ tem 33 cadeiras no plenário, mas duas estão vagas. O levantamento abrange até o último dia 19.
Embora a atuação dos parentes represente um percentual baixo em relação a todos os processos que tramitam no tribunal, a prática provoca incômodo na advocacia e em autoridades, já que não é raro observar a rápida ascensão profissional dos familiares em um mercado bastante disputado.
A relação eticamente questionável entre advogados e ministros soma-se a um cenário em que a reputação do tribunal está em xeque: tramita no STF (Supremo Tribunal Federal) uma investigação sobre a suspeita de venda de sentenças de ministros do STJ em um esquema que abrange servidores, advogados e lobistas.
Segundo divulgou o STF, não há até o momento elementos que atestem envolvimento de ministros do STJ no esquema.
Filha entra no processo quando ele chega ao STJ
Um caso recente expõe a forma como os parentes de ministros são acionados . O município de Satuba, no interior de Alagoas, acionou a Justiça Federal em Brasília em 2018 contra a ANP (Agência Nacional do Petróleo) para ampliar os valores de royalties a que teria direito por sediar em seu território uma parte do chamado Campo de Pilar, onde ocorre exploração de petróleo e gás natural.
O município saiu vitorioso na primeira instância e no TRF (Tribunal Regional Federal) da 1ª Região, mas a ANP recorreu das decisões e o caso foi enviado ao STJ em 2023.
Até chegar ao tribunal, o escritório que representava o município incluiu outros advogados na ação, por meio do chamado substabelecimento – isto é, quando um escritório dá poderes para outros advogados também atuarem no caso, como se fosse uma “subcontratação”.
Foi em um destes substabelecimentos que o filho do ministro Humberto Martins, Eduardo Martins, entrou no caso, em outubro de 2020, quando a ação ainda estava no TRF-1.
Ele não chegou a assinar os recursos, mas, quando o caso subiu ao STJ, o advogado que atuava desde o começo no processo deixou a causa e a entregou a outros em novembro de 2023.
Ao fazer isso, na prática, ele abriu mão de receber os honorários que poderia ganhar em processo no qual atuava havia cinco anos.
Em março, véspera de tomar posse como desembargador no TRF-1, Eduardo Martins renunciou ao caso.
Ao fazer isso, declarou que designou a irmã Luísa Martins e outros dois advogados para assumirem o processo.
A medida é pouco usual, já que, ao renunciar ao caso, o advogado perde o poder de atuar nele e de indicar outras pessoas.
Passados seis anos do início da ação da prefeitura, o caso aguarda julgamento no STJ.
O município é defendido por uma equipe de advogados diferente da que conduziu as ações ao longo de cinco anos. A filha de Humberto Martins só entrou no caso após ele chegar à Corte.
O processo chegou a ser distribuído para o ministro e ficou no gabinete dele de março a novembro de 2023, quando ele pediu para outro colega atuar no processo, sem mencionar que seu filho estava na equipe de defesa.
Atuação Sob Suspeita
Parentes de ministros que advogam no STJ já protagonizaram escândalos. Em 2020, Eduardo Martins foi alvo de uma investigação da Lava Jato com outros advogados sob a acusação de tráfico de influência.
O grupo foi citado na delação de Orlando Diniz, ex-presidente da Fecomércio do Rio. Eduardo Martins foi acusado de receber R$ 82 milhões para influenciar decisões do STJ.
No ano seguinte, a investigação foi anulada pela Segunda Turma do STF. Os ministros ponderaram que a investigação deveria ter sido conduzida pela Justiça Estadual, e não pela Justiça Federal, além de os mandados de busca e apreensão não terem o detalhamento das justificativas.
Livre das acusações, Eduardo Martins foi nomeado em março deste ano pelo presidente Lula desembargador do TRF da 1ª Região. As duas irmãs dele continuam advogando no STJ.
Procurado pelo UOL, o desembargador não comentou o assunto. Quando foi alvo da delação, ele se defendeu dizendo que era inocente.
Francisco Falcão é o ministro com mais parentes atuando no STJ. São três filhos e um enteado. Em seguida vem Luis Felipe Salomão, com dois filhos e um sobrinho. Entre os parentes que advogam, quem tem mais ações ajuizadas no STJ é a advogada Anna Maria Trindade dos Reis, esposa de Sebastião Reis Júnior, com 145 processos em tramitação hoje. Ela atua na Corte desde 1990. O marido tomou posse como ministro apenas em 2011.
Há filhos de ministros que se apresentam como especialistas em tribunais superiores. Catarina Buzzi, filha de Marco Buzzi, tem pós-graduação em direito eleitoral e cursa pós-graduação em direito marítimo. Mas, na página oficial de seu escritório, informa que sua prática hoje está focada em direito penal “especialmente em casos envolvendo tribunais superiores”.
A estratégia da família
Atualmente, o sistema do tribunal deixa registrado quando um parente de ministro atua como advogado e alerta sobre qual ministro deve estar impedido. Ainda assim, a atuação deste filhos eventualmente causa mal-estar interno. Em caráter reservado, um ministro do STJ disse ao UOL que o tratamento acaba sendo diferenciado quando recebe em seu gabinete o filho ou a esposa de um colega.
“Os filhos acabam sendo recebidos de forma mais desarmada. Por mim, pelo menos”, confessa. É comum ver esses advogados chegarem ao tribunal e serem recebidos por ministros sem agendamento prévio. Eles também têm acesso privilegiado aos integrantes do tribunal em festas em Brasília, onde são presença frequente.
Na página do tribunal, existe uma ferramenta para divulgar as agendas dos ministros, que inclui audiências com advogados.
No entanto, o espaço não é dos mais utilizados. Na prática, não há publicidade nem transparência sobre visitas nos gabinetes.
A lista de clientes dos parentes de ministros é extensa e inclui grandes companhias, como a Supervia e a Oi, bancos e grandes empresários, como Michael Klein, filho do fundador das Casas Bahia.
Também estão entre os clientes o Funcef, o fundo de pensão dos funcionários da Caixa, e até a Associação Nacional dos Servidores da Polícia Federal.
A atuação dos parentes de ministros pode ser usada como estratégia. O UOL ouviu de especialistas, advogados e autoridades que são comuns casos como os dos filhos de Humberto Martins, em que os filhos de ministros entram como advogados da causa quando elas chegam ao tribunal por meio de recurso apresentado a uma decisão de um tribunal da segunda instância, com a missão de reverter o entendimento.
Em outros casos, advogados podem ingressar em uma causa já em tramitação para garantir que o ministro parente não participe do julgamento, por impedimento.
A estratégia pode funcionar se a posição do ministro já é conhecida em sentido contrário ao interesse da parte.
Em caráter reservado, um ministro do STJ conta que alguns advogados ingressam na causa depois que o relator é sorteado, a depender da proximidade que mantêm com quem conduzirá o processo.
“Hoje em dia existem advogados especializados em ministros específicos do STJ, não apenas no tribunal”, disse um ministro da Corte sob reserva.
O que diz a legislação?
O estatuto da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) não proíbe os profissionais de atuarem em tribunais onde os familiares são juízes. O Código de Ética e Disciplina da OAB também não menciona o tema.
Já os magistrados estão submetidos às regras do CPC (Código de Processo Civil) e do CPP (Código de Processo Penal), que consideram o juiz impedido para julgar um processo em que o cônjuge ou um parente tiver atuado como advogado. É uma regra objetiva que obriga o magistrado a se afastar da causa.
Há também a regra de suspeição, que depende da declaração pessoal do juiz. Ele deve se afastar do julgamento de um processo quando um amigo ou inimigo for parte ou atuar na causa como advogado. Essa regra não é de cumprimento obrigatório.
No caso de um colegiado, ainda que o ministro se declare impedido ou suspeito para julgar processo em que seus parentes são advogados, fica o questionamento ético da influência que esses familiares podem exercer perante outros ministros que são colegas e, muitas vezes, amigos da família.
No ano passado, o STF facilitou ainda mais a atuação de advogados com parentes juízes. Em um julgamento, o plenário considerou inconstitucional regra do CPC que considerava o magistrado impedido de julgar processos em que a parte seja cliente do escritório de advocacia do cônjuge ou parente até terceiro grau, mesmo que outro advogado do escritório sem parentesco com o magistrado atue na causa.
Ou seja, fica liberado o colega do parente do ministro advogar na causa, ainda que eles pertençam ao mesmo escritório.
O voto que conduziu a maioria no STF foi dado pelo ministro Gilmar Mendes.
“O fato é que a lei simplesmente previu a causa de impedimento, sem dar ao juiz o poder ou os meios para pesquisar a carteira de clientes do escritório de seu familiar”, assinalou.
A enteada de Mendes, Maria Carolina Feitoza, é sócia em um escritório de advocacia do filho da ministra do STJ Isabel Gallotti, Luiz Felipe Gallotti Rodrigues. O escritório tem causas no STJ.
“O Brasil é país de privilégios”
Em 2012, o então presidente da Corte, Joaquim Barbosa, fez duros ataques à atuação de parentes de autoridades nos tribunais durante uma sessão do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
“Sou visceralmente contra. Esses filhos, esposas, sobrinhos de juízes são muito acionados pelos seus clientes pelo fato de serem parentes, não pela qualidade técnica do seu trabalho”, afirmou.
Na ocasião, ele ressalvou que aquela era uma opinião pessoal. A fala repercutiu, mas não foi proibiu a prática.
“O Brasil é país de privilégios, internalizados como se fossem a coisa mais normal do mundo; parece até que é direito constitucional”, disse Barbosa. (UOL).